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Coronavírus: há alguma evidência de que o novo coronavírus tenha sido criado em laboratório?

Mercado de Wuhan é apontado como o foco inicial da pandemia, mas há muito a se esclarecer ainda

*BBC News

Em abril, vieram à luz trocas de mensagens de 2018 entre diplomatas do Departamento de Estado americano citando sua preocupação quanto à biosegurança de um laboratório viral em Wuhan, na China. A cidade foi o primeiro epicentro da pandemia do novo coronavírus.

Ao mesmo tempo, um comunicado emitido nesta quinta-feira (30/4) pelo Escritório da Direção de Inteligência Nacional dos EUA (que supervisiona os órgãos de inteligência do país) afirmava que “a comunidade de inteligência concorda com o consenso científico de que o vírus da covid-19 não foi feito pelo homem ou geneticamente modificado”.

De qualquer modo, oficiais de inteligência seguem investigando se a pandemia se originou mesmo da transmissão de animais para humanos ou se surgiu em algum laboratório, mesmo que por acidente.

A seguir, destrinchamos o que há de concreto nisso:

O que diz a troca de mensagens do Departamento de Estado?

Em reportagem de 14 de abril do Washington Post, trocas de mensagens diplomáticas de 2018 mostravam que cientistas diplomáticos haviam sido enviados diversas vezes para visitas a uma organização de pesquisas na China.

Esses cientistas mandaram dois alertas a Washington sobre esse laboratório. Segundo a reportagem, os cientistas estavam preocupados quanto à segurança e ao gerenciamento de falhas no Instituto de Virologia em Wuhan (WIV) e pediam ajuda.

A reportagem diz também que esses enviados se preocupavam com a possibilidade da pesquisa do laboratório chinês sobre coronavírus em morcegos poder gerar uma pandemia semelhante à da Sars. O jornal afirma que as trocas de mensagens deram combustível, dentro do governo dos EUA, a discussões quanto a se o WIV ou outro laboratório em Wuhan poderia ser a fonte originária do vírus causador da pandemia atual.

Além disso, a emissora Fox News, considerada próxima ao presidente Donald Trump, fez uma reportagem afirmando ter ouvido de fontes que “há crescente confiança de que a pandemia provavelmente surgiu em um laboratório de Wuhan, embora não como uma arma biológica, mas como parte do esforço chinês para demonstrar que seus esforços para identificar e combater vírus são iguais ou maiores do que as habilidades dos EUA”.

A pandemia veio à tona no final do ano passado, quando casos iniciais foram relacionados a um mercado de comida e animais de Wuhan. Mas, apesar da ampla especulação, ainda não há uma evidência concreta de que o Sars-CoV-2 (que causa covid-19) tenha sido acidentalmente liberado desde um laboratório.

E na última quinta-feira, o Escritório da Direção de Inteligência Nacional dos EUA descartou por enquanto teorias conspiratórias sobre a origem do vírus, embora diga que ainda está analisando se o surto atual “começou pelo contato com animais infectados ou foi resultado de algum acidente em um laboratório de Wuhan”.

O jornal The New York Times publicou nesta semana que membros do governo Trump têm pressionado agentes de inteligência para que eles apoiem, mesmo sem provas, a teoria de que o vírus teria vindo do laboratório em Wuhan. Analistas de inteligência ouvidos pelo jornal demonstraram preocupação de que essa pressão distorça as análises feitas pelas agências.

Trump tem aumentado seu esforço em culpar a China pela pandemia: ao ser perguntado a respeito de se havia visto algo que o fizesse pensar que o WIV era a fonte original da pandemia, ele respondeu: “Sim, eu vi”. Ele disse ter visto “evidências convincentes disso”, mas não detalhou e não apresentou provas.

A China rejeitou essas acusações e criticou a resposta dos EUA à crise.

China: país tem o maior número de recuperados e declarou que a pandemia foi contida

Que tipo de segurança esses laboratórios têm?

Laboratórios que estudam vírus e bactérias seguem um sistema conhecido como padrão BSL – sigla em inglês para nível de biosegurança.

São quatro níveis, que dependem do tipo de agentes biológicos que estão sendo estudados e das medidas preventivas necessárias para isolá-los.

O nível de biosegurança 1 (BSL-1) é o mais baixo, usado por laboratórios estudando agentes biológicos bem conhecidos e que não ameaçam a vida humana.

As medidas de contenção aumentam até o BSL-4, o mais alto, reservado para laboratórios que lidam com patógenos perigosos e para os quais há poucas vacinas e tratamentos: ebola, vírus de Marburg (que causa febre hemorrágica) e – no caso de dois institutos nos EUA e na Rússia – varíola.

Os padrões BSL são aplicados internacionalmente, mas com algumas variantes de nomenclatura.

“Os russos, por exemplo, classificam seus laboratórios de alta contenção como 1 e os de baixa contenção como 4, ou seja, o exato oposto do padrão. Mas as exigências de práticas e infraestrutura em si são similares”, diz Filippa Lentzos, especialista de biosegurança no King’s College London.

Laboratórios como este na Hungria têm de seguir rígidos padrões internacionais

No entanto, embora haja um manual da Organização Mundial da Saúde (OMS) a respeito, esses padrões não são exigidos formalmente por nenhum tratado internacional.

“Eles foram desenvolvidos para serem do melhor interesse de que se trabalhe de modo seguro, para que funcionários de laboratórios não infectem a si mesmos ou suas comunidades, e para que o ambiente evite acidentes”, prossegue Lentzos.

Ela acrescenta que “Se você quer fazer projetos com parceiros internacionais, é exigido que o laboratório opere sob determinados padrões. O mesmo vale se você tem produtos ou serviços (de biosegurança) que quer vender no mercado.”

O WIV, por sinal, recebeu financiamento dos EUA, além de assistência de institutos de pesquisa americanos. Os documentos diplomáticos divulgados recomendavam que essa assistência aumentasse.

Que tipos de falhas os documentos diplomáticos apontavam?

Os documentos publicados pelo Washington Post não deixam isso claro. Mas, de modo geral, há múltiplas formas em que medidas de segurança podem ser desrespeitadas em laboratórios que lidam com agentes biológicos.

Segundo Lentzos, isso inclui “quem tem acesso ao laboratório, o treinamento e retreinamento de cientistas e técnicos, os procedimentos de registros, o inventário de patógenos, práticas de notificação de acidentes e procedimentos de emergência”.

Mas quão incomuns são as preocupações expressadas nos documentos diplomáticos?

Acidentes acontecem. Em 2014, frascos esquecidos de varíola foram encontrados em uma caixa de papelão em um centro de pesquisas perto de Washington. Em 2015, militares americanos acidentalmente enviaram amostras vivas de antrax (em vez de esporos mortos) para até nove laboratórios ao redor do país e para uma base militar na Coreia do Sul.

Há variações de padrões de segurança pelos diversos laboratórios da parte inferior da escala BSL, e muitas brechas de pequena dimensão sequer chegam ao noticiário.

Já no nível BSL-4 o número de laboratórios operantes é são relativamente pequeno. A Wikipedia lista mais de 50 ao redor do mundo, incluindo o de Wuhan; mas não há uma listagem oficial.

Esses laboratórios têm de ser construídos sob regras bem específicas, por lidarem com os mais perigosos patógenos conhecidos da ciência. Como resultado, eles costumam ter práticas de segurança rígidas. Então qualquer preocupação com a segurança nesses locais provavelmente chamaria a atenção.

Já não havia informações prévias de vazamento de vírus de laboratório?

Sim, e houve especulação – em geral não baseada em dados – assim que o coronavírus veio à tona.

Uma teoria difundida na internet em janeiro sugeria que o vírus tivesse sido projetado como uma arma biológica. Essa alegação foi repetidamente desmentida por cientistas, que notaram que os estudos mostram que o coronavírus provavelmente se originou de animais – provavelmente morcegos.

Vírus também podem ser projetados para fins de pesquisa científica. Por exemplo, estudos podem melhorar a habilidade de de um patógeno causar doenças com o objetivo de investigar como vírus fazem mutação.

Mas um estudo americano sobre o genoma do novo coronavírus, publicado em março, não encontrou nenhum sinal de que ele tivesse sido projetado. “Ao comparar os dados disponíveis da sequência genômica das cepas conhecidas do coronavírus, podemos dizer com segurança que o Sars-CoV-2 se originou de processos naturais”, disse na época o coautor Kristian Andersen, do Instituto de Pesquisa Scripps, na Califórnia.

Vírus podem ser feitos para mutação em laboratório sem a manipulação direta de seus genes. Em experimentos, vírus ou bactérias são passados de um animal de laboratório para outro com o objetivo de estudar como os patógenos se adaptam a seus hospedeiros. No entanto, novamente, não há evidência de que isso tenha ocorrido no caso do novo coronavírus.

Há, também, a alegação de que pode ter havido a soltura acidental de um vírus natural de dentro de um laboratório. Isso ganhou força ante a proximidade do mercado de Wuhan )apontado como origem do surto) com ao menos dois institutos de pesquisa de doenças infecciosas.

Já era notório o fato de que o WIV fazia pesquisas em coronavírus de morcegos. Essas pesquisas são consideradas legítimas e publicadas em jornais científicos internacionais. Dada a experiência chinesa com a epidemia da Sars, nos anos 2000, isso não chega ser surpreendente.

A crença principal até agora é de que o Sars-CoV-2 se espalhou a partir do Mercado de Huanan, em Wuhan, onde diversas espécies de mamíferos vivos eram mantidos e vendidos. A ideia é de que um vírus de morcego tenha sido transmitido a humanos por meio de um animal intermediário.

No entanto, alguns pesquisadores expressaram dúvidas quanto a essa explicação ainda em janeiro, quando um artigo publicado no Lancet mostrou que, embora a maioria dos pacientes iniciais de covid-19 tenha tido algum contato com o mercado, muitos outros não tinham qualquer ligação com o local. É possível que essa ligação ocorra de uma forma que ainda não foi decifrada pela ciência.

A médica Lentzos diz que identificar a origem do vírus é “muito difícil” e acrescenta que “tem havido discussões silenciosas, de bastidores (…) na comunidade de especialistas em biossegurança, questionando a (teoria) da origem do mercado de Wuhan que veio muito fortemente da China”.

Por enquanto, porém, não há nenhuma evidência de que o WIV seja a fonte da Sars-CoV-2.

Em 16 de abril, o porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da China, Zhao Lijian, tratou do assunto em uma entrevista coletiva, dizendo que especialistas da OMS “disseram múltiplas vezes que não há evidência de que o novo coronavírus tenha sido criado em laboratório”.

A China foi duramente acusada de pouca transparência no início da pandemia – acusação que rejeita. O secretário de Estado dos EUA, Mike Pence, disse que Pequim “precisa pôr a limpo” sobre o que sabe a respeito do novo coronavírus.

Em meio à disputa de narrativas, o meticuloso trabalho científico de traçar as origens do novo coronavírus devem continuar.

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