A possibilidade de realizar testes rápidos para o novo coronavírus em farmácias, aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pode ser pouco confiável para o diagnóstico individual da doença e ainda levar as pessoas a comportamentos de risco. A ferramenta faz mais sentido para estudos epidemiológicos, para ajudar a compreender a distribuição da doença na população de forma geral, segundo especialistas ouvidos pelo Estado, do que como um “passaporte imunológico”. Mas ainda assim há limitações.
O teste que será oferecido nas farmácias detecta a presença de anticorpos para o vírus no sangue. Os anticorpos, no entanto, só são detectáveis a partir do sétimo dia do surgimento dos sintomas da infecção; preferencialmente, dez dias depois. Pessoas que já têm o vírus, mas não apresentem sintomas, vão testar negativo. Ou mesmo alguém que já esteja se sentindo mal pode ir à farmácia e sair de lá com um resultado negativo.
Outro problema é que esses testes que foram aprovados em massa pela Anvisa têm apresentado sensibilidade baixa, de cerca de 60% a 70%, segundo Carlos Eduardo Ferreira, da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica / Medicina Laboratorial. “Ou seja, pelo menos 30% dos testes ainda podem dar falso negativo. Nos primeiros dias de sintomas, a chance de falso negativo é ainda maior.” A partir do 14º dia, a chance de acerto é ainda maior, tempo em que normalmente os sintomas já desapareceram.
Quando o resultado for positivo, a margem de erro é bem menor, mas existe. A presença de anticorpos para outros coronavírus circulantes e o fato de ter tomado determinadas vacinas, por exemplo, podem levar a resultados de falso positivo. O indivíduo pode acreditar que já teve a doença e que, portanto, estaria imune ao vírus, deixando de cumprir regras de proteção. Além disso, já foram constatados na UFRJ casos de pessoas que têm os anticorpos, mas também têm o vírus ativo, ou seja, continuam transmitindo.
A própria imunidade conferida pela infecção é ainda questionável. A Organização Mundial de Saúde (OMS) disse que, embora essa imunidade seja provável, ela não é uma certeza absoluta. Também não se sabe, por exemplo, por quanto tempo uma possível imunidade conferida pela doença seria válida.
“Muitas perguntas sobre esse vírus ainda não foram respondidas; acho que o uso indiscriminado dos testes sem interpretação médica pode gerar ainda mais confusão”, aponta o virologista Amilcar Tanuri, do Laboratório de Virologia Molecular da UFRJ e integrante do grupo de diagnóstico da força-tarefa da universidade contra a covid-19. “Os farmacêuticos vão orientar as pessoas, falar sobre todas essas questões? Vão encaminhar as pessoas a hospitais, se for o caso? Vão notificar o ministério?”.
Para a bióloga Natália Pasternak, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, os testes de farmácia podem causar confusão e levar a comportamentos de risco. Segundo ela, isso aconteceu em Brasília. “Pessoas que fizeram teste na rua saíram dizendo ‘graças a Deus deu negativo’. Mas isso não quer dizer nada. Pode ser um falso negativo, pode ser que nunca esteve doente, que está doente e ainda não desenvolveu o anticorpo. Ela pode achar que está segura e vai visitar os pais idosos.”
O infectologista Fernando Bozza, da Fiocruz, lembra que todos esses testes são muito novos e que há vários projetos de validação desses diagnósticos em andamento em todo o mundo. “Mesmo ao usarmos os melhores testes, os mais recomendados, precisamos saber das limitações deles”,diz ele, que está coordenando o projeto Dados do Bem, do Instituto Dor de Pesquisa e Ensino (Idor), cujo objetivo é criar mapas de distribuição da covid-19 no Estado, a identificação de concentração da transmissão e a análise da evolução da imunidade da população.
Segundo ele, os testes são muito bons para tais levantamentos epidemiológicos, como aqueles que buscam não um diagnóstico individual, mas uma tendência populacional. É possível, por exemplo, determinar em que regiões o vírus é mais prevalente, se há concentrações em áreas específicas, como a infecção está se disseminando no País, qual o percentual da população que já teve a doença, entre outras.
O médico Ricardo Schnekenberg, doutorando em neurociências clínicas na Universidade de Oxford (Reino Unido) que criou um blog de notas sobre os avanços científicos em relação à covid-19, lembra que outros países que tentaram comprar esses testes rápidos em massa acabaram se arrependendo, como Espanha e Inglaterra.
“A Inglaterra comprou 2 milhões de testes, eles foram testados para validação aqui em Oxford e se viu que são muito ruins, não serão usados. A Espanha está tentando devolver”, diz. “Os melhores testes do mercado têm sensibilidade de 80% (a capacidade de acertar se é positivo) e especificidade média de 94% (a capacidade de acertar o resultado negativo). Para fins de estudos epidemiológicos, essas taxas são aceitáveis e é possível fazer correções para medir a prevalência na população, mas para o nível individual, não”, defende.
“Se a população estiver fazendo o teste para saber se está contaminada ou não e tomar decisões, isso está errado”, complementa Schnekenberg.