Conheci o Thiago de Mello em meados dos anos 80. Eu era uma jovem que caminhava da escola de inglês à escola de francês em Manaus e na saída, sentava-me na calçada do Teatro Amazonas para curtir o por do sol, rodeada de amigos e de um vento qua aparecia de vez em quando para abafar o calor da terrinha. Nessas idas e vindas conheci meia cidade, professores, artistas e fui me tornando gente! Daí que uma amiga querida me apresentou o Thiago. Daí para nos tornarmos hospedes da casa de Barreirinha foi um pulo. Íamos com frequência. Uma viagem mesmo. Barco de linha, 24 horas navegando penduradas em redes e uma chegada excepcional!
A recepção incluía um banho de cheiro. Sim, éramos recebidas com bacias repletas de ervas cheirosas, toalhas bem branquinhas e muita conversa e risadas. Novidades trazidas da cidade grande e as histórias da pequena Barreirinha. Depois, a instalação no magnífico casarão projetado por Lúcio Costa e construído no meio de um bosque de árvores da floresta amazônica, se dava em quartos repletos de conforto e vistas indescritíveis. A casa era incrível. Repleta de grandes obras de arte, que nos acompanhavam pelas escadas, quartos a até banheiros!! Eu ficava encantada com aquilo.
Enquanto o poeta ia trabalhar, nós íamos passear pela vila e quando dava tempo, nos aventurar pelo grande rio Andirá. O rio Andirá é um rio de águas escuras como o Negro (que banha Manaus) e fica atrás de Barreirinha, que por sua vez, se localiza às margens do Paraná do Ramos (paraná é um como chamamos rio “menor” aqui na região).Lá no Andirá, muitos banhos, passeios de barco e histórias de pescador. Contato direto com os nativos e as crianças, era tudo de bom.
A casa do poeta tinha coisas muito peculiares, a mais bacana delas era a sala de estar. Lá não havia poltronas ou sofás) Apenas redes. Que delícia. Ainda sonho com uma sala dessas!
As refeições eram uma outra especialidade. Peixes e frutas frescas, fogão a lenha, tudo do melhor. Uma grande mesa ao ar livre e só delícias.
A biblioteca do Thiago ficava num anexo à casa.Era para lá que íamos nas tardes, enquanto ele trabalhava ou contava suas histórias, com os grandes amigos que permeavam sua vida como Pablo Neruda. Para nós, aprendizados e encantamento. Um mundo a desbravar. A cada livro que descobríamos, a história sobre o livro, além do enredo do livro!
Muitos anos se passaram, a vida seguiu e os encontros com o amigo Thiago ficaram menos constantes, sem visitas ao Porantim que tomou outros rumos não tão felizes como os de outrora.
Em 2013, nos poucos meses que estive à frente da Fundação Municipal de Cultura, tive a honra de receber a coleção completa das obras de arte de seu acervo particular, aquelas que enchiam meus olhos lá na minha juventude hospedada em Barreirinha, para fazer parte da coleção permanente da Prefeitura de Manaus e a inaugurar a exposição do Paço da Liberdade numa sala dedicada a ele. Que emoção! Missão cumprida com enorme sucesso.
Não tenho fotos com Thiago, assim como não recebia beijos dele. Eram cheiros. E grandes memórias, risadas, muitas risadas.
Eu sempre que releio os Estatutos, fico na dúvida, de qual o artigo mais lindo, pra hoje, escolho o Artigo Final:
“ Fica proibido o uso da palavra liberdade
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
ou como a semente do trigo,
e a sua morada será sempre
o coração do homem. “
Estatutos do Homem, Thiago de Mello
Voa livre, querido Thiago. E obrigada por existir.
Inês Daou
Diretora de produção da Iai Promoções, coordena o planejamento, a produção e a comunicação integrada dos eventos da empresa desde 1991.
Foi diretora do Teatro Amazonas, secretária adjunta de Cultura e Turismo do Amazonas, presidente da Fundação Rádio e TV Cultura do Amazonas e da Fundação Municipal de Cultura e Turismo.
