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O Auto do Boi no Brasil

Auto do Boi do Maranhão - divulgação/internet

Das possíveis origens do Auto do Boi

Cascudo (1988) sustenta que o Bumba-Meu-Boi tenha se tornado o primeiro auto com caráter nacional, na medida em que assimila, reconfigura e transforma heranças advindas das diversas matrizes constantes no mosaico étnico da incipiente nação brasileira, gestada a partir do Quinhentos. O auto, que tem como pano de fundo – ainda que encenado no universo profano13  – o arquétipo de morte e renascimento,
descreve também as relações da incipiente sociedade colonial que ia se gestando. Se uns advogam uma origem preponderantemente africana, (Ramos, Teixeira) outros, (Cascudo, Monteiro) referem a ancestralidade lusa como primordial no auto. O certo é que o folguedo do boi vai se manifestar de diversas formas no Brasil. O mais remoto documento de que há notícia, no qual é mencionado expressamente o Bumba-Meu- Boi, data de 11 de janeiro de 1840. Num órgão de imprensa pernambucano, O Carapuceiro, o autor do texto, Padre Lopes da Gama, considerava o Bumba-Meu-Boi “um agregado de disparates”. E acrescentava:

“De quantos recreios, folganças e desenfados populares há neste nosso Pernambuco, eu não conheço um tão tolo, tão estúpido e destituído de graça como o, aliás, bem conhecido Bumba-Meu-Boi.” ( in CARNEIRO, 1927).

Embora as alusões aqui contidas nos remetam para os séculos XVIII e XIX, é muito provável que o Catolicismo popular oriundo de Portugal, eivado de simbologias pagãs, tenha sido transferido para o Brasil logo nos primórdios da colonização. Seria esse o tipo de religiosidade que cruzaria o Atlântico a partir de Portugal, e se ambientaria na sociedade colonial que então se gestava.

Este Catolicismo popular, além de impregnado em festas, folguedos e costumes trazidos para o Brasil, seria também profusamente utilizado na catequização dos “gentios” levada a cabo pelos jesuítas desde os primórdios da colônia. Carneiro (1927) mostra-nos que no século XIX, a festa do boi estava consolidada no litoral do nordeste brasileiro, e aponta-nos o motivo folclórico presente no Recôncavo Baiano e, até, em Salvador. “E o folguedo, que apresenta feição local, não deixa de incluir as partes da morte do boi, a divisão, o testamento, e a ressurreição do animal.” (CARNEIRO, 1927).

De acordo com as razões acima apontadas, será lícito considerar que no século XIX o folguedo do boi fazia parte do cenário antropológico-cultural do litoral nordestino como manifestação popular arraigada regionalmente. Não se nos afigura possível, no entanto, afirmar que todas as manifestações do folguedo taurino no Brasil descendam deste mesmo Auto do Boi identificado primeiramente no Nordeste. Porém, podemos verificar que com outras denominações – e as peculiaridades locais adquiridas em suas múltiplas trajetórias e diálogos culturais -, a festa do boi se fará presente, ao longo dos séculos, em várias regiões do Brasil. É diversa a sinonímia que o designa: Bumba-Meu-Boi (Maranhão, Alagoas e Pernambuco), boi, boi calemba, bumba (Pernambuco), Boi-Bumbá (Belém-Pará) boi–surubi (Ceará), boi de mamão (Santa Catarina), boi de Reis, boi-dá, boizinho (Rio Grande do Sul) (DUARTE, 1957).

Embora presente com maior peso no Norte e Nordeste do Brasil, a festa do boi é visível em suas múltiplas variantes em quase todo o território nacional. Chama-nos a atenção que o texto de Duarte, publicado em 1957, não faça nenhuma alusão ao Boi- Bumbá amazonense. É provável que a referência ao Boi-Bumbá em Belém do Pará pretendesse abarcar toda a região amazônica. Por outro lado, esse fato denota que até a década de 1950, o Boi-Bumbá no Amazonas ainda não figurava em destaque no cenário da cultura popular nacional. É lícito pensar, no entanto, que diferentes variantes do Auto do Boi tenham se desenvolvido simultaneamente em diversas regiões do Norte e do Nordeste brasileiros, incorporando variadas influências, num processo dinâmico de múltiplas fusões sobre um mesmo tema. Existem alusões e descrições do fenômeno em vários lugares: Barcelos, Amazonas, em 1787; Recife, Pernambuco, em 1840; Manaus, Amazonas, em 1859; Pinhel, Pará, por volta de 1880 Humaitá, Amazonas, no início do século XX; Parintins, Amazonas, século XX. 14 ;

Há que mencionar a hipótese postulada por Ypiranga Monteiro (2004) de que o Boi-Bumbá amazonense descenderia direta e exclusivamente de uma variante portuguesa15. Ainda que não seja esse o objeto imediato da análise neste texto – pelo que não o vamos aqui discutir -, há que mencionar a grande pesquisa de Monteiro sobre o Boi-Bumbá amazonense. Monteiro identifica por analogia, o arquétipo morte renascimento, expresso pelo rito mitraico, num mito indígena amazônida. Com a palavra Ypiranga Monteiro:

“A diferença que existe entre o ritual do sacrifício da cobra Sucuriju (rio Negro, Amazonas) e o holocausto do Touro ou boi (Ásia, África) é apenas de espécie animal. O motivo é o mesmo, mesmas são as práticas cerimoniais, iguais as experiências e finalidades.” (2004; 23)

E mais adiante, afirma:

“Por outro lado, dizer que o nosso bumbá é originalmente regionalista é transigir demais com a realidade, pois de suas características regionais, só se salva a contribuição da maloca de índios. O resto do enredo cabe dentro de uma frame universal, que o é sem contestação.” (2004;28)

Logo, a fusão de elementos indígenas com a festa do boi importado do outro lado do Atlântico – viesse ele da África ou da Europa -, encontrava eco num mesmo arquétipo amazônida expresso no ritual da cobra Sucuriju. Não seria de estranhar, portanto, a aceitação e entrelaçamento de elementos indígenas ao Boi-Bumbá que se gestaria no Amazonas.

É sobre a manifestação mais recente do Boi-Bumbá, no Amazonas que passamos a falar.

O Auto do Boi

Sucintamente – e para contextualizar o leitor -, o Auto do Boi-Bumbá, 16 conforme me foi narrado por Mestre Xerxes, durante minha pesquisa de campo em Manaus -, conta a história de um casal de negros, Nêgo Chico e Catirina, que vivem numa fazenda de propriedade do patrão, branco, o personagem Amo do Boi. Catirina, grávida, deseja comer a língua do animal, e convence Chico a matar o bovino para lhe satisfazer a vontade. Ao dar-se conta de que seu boi favorito morrera “de morte matada”, o Amo do Boi, o patrão, manda procurar pelo presumível responsável pelo sumiço do animal, Nêgo Chico. Depois de muitas peripécias, o boi era ressuscitado pelo Padre, ou pelo Pajé – ambos personagens do auto – Nêgo Chico, por fim perdoado, e tudo terminava em grande festa.

Em relato ambientado também no Amazonas, o enredo tradicional do Boi-Bumbá é enunciado da seguinte forma: o Fazendeiro, ou seja o patrão (representando o branco de origem europeia, personagem dono da fazenda no auto) tem um boi e a Catirina (personagem negra, empregada da fazenda), grávida, deseja comer a língua daquele boi, o animal favorito do patrão. O marido de Catirina, o personagem Pai Francisco (Nêgo Chico), resolve sequestrar o animal e matá-lo para satisfazer o desejo de sua mulher grávida; Nêgo Chico é descoberto, o patrão tenta puni-lo; a partir daí Pai Francisco é obrigado a tomar todas as providências para fazer o boi ressuscitar; manda buscar o personagem Médico, que nunca logra ressuscitar o bovino. Por fim, será o Pajé – personagem que representa o indígena -, quem ressuscitará o boi.

O Boi-Bumbá irá se gestar o longo dos séculos XIX e XX como uma expressão popular típica do Amazonas. Mais recentemente adquiriu até o papel de expressão de um sentido identitário regional no Amazonas contemporâneo, ao ressignificar a narrativa do Auto do Boi no Festival Folclórico de Parintins. Ao migrar para o mercado de bens simbólicos – o que progressivamente se evidenciou a partir da década de 1980 -, o Boi-Bumbá deixa definitivamente de assumir qualquer relação com o sagrado, tornando-se um produto da indústria cultural. A morte do personagem Boi chegou a ser obliterada da narrativa parintinense, tendo, no entanto, sido recuperada e voltado à cena em anos recentes. Se o arquétipo de Morte e Renascimento continuam ressoando de forma subliminar nas galeras do azul e do encarnado, é algo que não podemos afirmar. Talvez possa ser assunto para um estudo particular, qual seja o de identificar de que forma o sagrado e o profano se conjugam sincreticamente no reconhecimento de um arquétipo que remonta ao Crescente Fértil e ao surgimento da revolução agrícola. Um arquétipo que nos acompanha há séculos, que atravessou o Atlântico e aportou a Parintins, acompanhando a vocação pecuária da ilha Tupinambarana.

Boi Caprichoso – Festival Folclórico de Parintins 2019 – Foto: Bruno Zanardo
Boi Garantido – Festival Folclórico de Parintins. Foto: Bruno Zanardo

Mesmo que o sentido sacro não se faça mais presente no Boi-Bumbá contemporâneo, há que mencionar o aspecto arquetípico de morte e renascimento, presente na gênese de sua narrativa, cuja mensagem subliminar permanece imanente e eterna.

 

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13 E eu estou usando profano de acordo com sua origem estritamente etimológica proveniente do latim. Pro (em frente ) fanum (templo), ou seja, fora do espaço sagrado.

14 De acordo com pesquisa efetuada por Gil Braga (2000), apenas a partir da década de 1980 o Boi- Bumbá de Parintins surge em notas da imprensa no Amazonas. Hoje, amparados em pesquisas acadêmicas, temos conhecimento de que o folguedo é uma expressão folclórica local que data de mais de um século de existência. Cumpre salientar que Parintins tem como sua primordial atividade econômica a criação de gado, o que corrobora a tese de Campbell de que o folguedo bovino acompanha a expansão pecuária,

15 No texto referido por Monteiro, redigido em português setecentista, as autoridades da metrópole europeia instam a administração local em Barcelos – primeira sede administrativa da Capitania de São José do Rio Negro, atual estado do Amazonas -, a celebrar um folguedo denominado boi de São Marques, provável corruptela de São Marcos, O Evangelista. Boi de São Marcos terá sido uma designação do folguedo, antes mesmo de ser denominado boi de São João. De acordo com Monteiro,

“ (…) o nosso bumbá é mesmo de origem eurásica e nos foi transmitido pelo colono português a partir de 1787, documentadamente e não pelos nordestinos, cuja entrada no Amazonas data episodicamente (em migração não seletiva) de 1877.”( 2004; 22) .

16 Mestre Xerxes é um mestre de Boi-Bumbá que continua em atividade em Manaus, no Bairro de Santa Etelvina, Zona Norte da cidade. Ligado ao que ele mesmo denomina como “Boi-Bumbá tradicional”, começou cedo a participar do folguedo na companhia de seu pai, o lendário Mestre Maranhão, falecido nos inícios do século XXI, na capital do estado do Amazonas.

Rui Carvalho/Arquivo Pessoal

 

  • Rui Carvalho é regente titular da Amazonas Band, arranjador e compositor, doutor em Etnomusicologia pela Unicamp e diretor-geral do Festival Amazonas Jazz.

 

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