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Ribeirinhos ganham direito inédito de uso da terra no Amazonas após 16 anos de luta

Em março, 15 comunidades ribeirinhas do Rio Manicoré, no Amazonas, conquistaram, de maneira coletiva, uma Concessão de Direito Real de Uso (CDRU); é a primeira vez que isso ocorre no estado.
Porto de comunidade ribeirinha no Rio Manicoré. Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace

*Da Redação do Dia a Dia Notícia 

Liderados por uma professora e uma agricultora familiar, 15 comunidades tradicionais das florestas públicas de Manicoré, município no sul do Amazonas, conquistaram em março o reconhecimento e o direito de uso coletivo do território após 16 anos de luta. É a primeira vez na história do Amazonas que povos tradicionais ganham uma Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) coletiva por tempo indeterminado.

Também é a primeira vez que a concessão é aplicada a famílias que não vivem em uma unidade de conservação. A reportagem é da Mongabay.

“Criamos o Território de Uso Comum do Rio Manicoré, uma experiência inédita de proteção”, diz o procurador do Estado Daniel Viegas, chefe da Procuradoria do Meio Ambiente, explicando que, para emitir a CDRU aos ribeirinhos do Rio Manicoré, o governo amazonense teve que alterar a legislação fundiária estadual.

  • Parte destes ribeirinhos luta, desde 2006, para que o território seja transformado em Reserva de Desenvolvimento Sustentável. Mas, por medo e desinformação espalhados por madeireiros e grileiros, a maioria dos comunitários não aprova a reserva.

Formado por um mosaico de três Terras Indígenas, nove Unidades de Conservação e quase 9 mil km2 de florestas públicas não destinadas (é nesta área que vivem os ribeirinhos), a região do Rio Manicoré é uma das mais preservadas da Amazônia brasileira.

Além da preservação ambiental de uma área de extrema importância para a Amazônia, a CDRU ajudará a manter o modo de vida tradicional dos cerca de 4 mil ribeirinhos que vivem no território, entre extrativistas, agricultores familiares e artesãos de canoa e remo.

“O Manicoré vive do açaí, castanha, tucumã, banana, cacau e da roça. Vivem todos bem, do que a natureza dá, sem desmatar”, afirma a agricultora familiar Maria Clea Delgado, presidenta da Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim), uma das responsáveis pela conquista da Concessão.

Mulher ribeirinha na região do Rio Manicoré; moradores se deslocam pelo território por meio de canoas e barcos. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace

Quando a Mongabay visitou as comunidades, em junho, os comunitários se preparavam para a Festa do Açaí da comunidade do Estirão, a uma hora de barco do município de Manicoré.

“Todo mundo planta açaí aqui”, diz o agroextrativista Manoel Tomé Correa, exibindo com orgulho a pequena plantação de açaí da família — que inclui tios, os pais, dois irmãos e os sobrinhos, todos vizinhos.

“A Festa do Açaí do Estirão é a melhor festa do Rio Manicoré, um dia e uma noite de festa. Tem forró, tem a dança do açaí. Todo o dinheiro conseguido na festa vai para a nossa associação comunitária”, conta o agroextrativista.

Toda a família de Manoel nasceu na comunidade e trabalha coletando açaí, castanha e andiroba. Do açaí, eles fazem o suco e o creme; da andiroba, extraem o famoso óleo do fruto, usado para quase tudo no Amazonas: de repelente natural a remédio para curar dor de garganta. Tudo o que colhem e coletam do próprio quintal é vendido em Manicoré ou para atravessadores que percorrem o rio em busca dos produtos da floresta.

“Tem que preservar a floresta para depois não faltar. Aqui, a gente vive tranquilo. Mas estão destruindo aí para dentro, a gente ouve. Se destruírem, como vamos sobreviver?”, diz Manoel, que nunca saiu da comunidade.

Para a gestora ambiental Cristiane Mazzetti, porta-voz da campanha de Amazônia do Greenpeace Brasil, a CDRU é uma importante conquista na luta dos povos do Rio Manicoré.

“Apesar de a CDRU não ser um instrumento de conservação ambiental, ela tem objetivos que se aproximam dos de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável, como a garantia da permanência das populações tradicionais e a manutenção das suas atividades sustentáveis, além do próprio reconhecimento do território”, explica Mazzetti.

O procurador do Estado Viegas concorda. “Por meio da regularização fundiária, a Concessão de Direito Real de Uso produz efeitos sobre a proteção ambiental, já que o texto da CDRU traz limites para a exploração no território”, afirma.

De acordo com a Lei nº 9.985 de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), populações tradicionais que vivem em reservas, florestas nacionais e demais unidades de conservação podem fazer uso dos recursos naturais de forma racional e desenvolver atividades econômicas sustentáveis, como o extrativismo, mas fica proibida a caça e a pesca profissional e a exploração dos recursos minerais.

O agricultor Manoel Tomé Correa mostra o óleo de andiroba feito pela família em uma comunidade no Rio Manicoré. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace

“Balsas de madeira entram e saem toda semana”

Apesar da conquista, o objetivo da Caarim, formada por parte dos 4 mil ribeirinhos que habitam a área, é o de transformar a região em uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS).

“Lutamos para que aqui seja uma RDS por causa das invasões e do desmatamento no nosso território. Queremos proteção”, explica a professora municipal Marilourdes Cunha da Silva, fundadora da Caarim.

Quem navega pelas águas que cortam a extensão territorial do município de Manicoré consegue avistar balsas que chamam atenção pelos nomes — Dona Raimunda, Fátima, Rosa —, mas também pela quantidade de toras de madeira que carregam. Algumas também levam gado e tratores.

“Tem muito madeireiro na região oferecendo dinheiro pra gente cortar árvores nativas. Por um angelim desse tamanho, estão pagando 400 reais”, conta um ribeirinho ao avistar um angelim de cerca de 30 metros de altura, nativo da região e cobiçado pelos madeireiros. “Tem gente que aceita cortar porque é um dinheiro rápido, mais rápido que plantar uma roça e ter que esperar meses para colher”,  diz o morador, que por segurança não será identificado.

“Balsas com madeira entram e saem daqui toda semana. Três, quatro balsas carregadas de madeira saindo do Rio Manicoré toda sexta-feira. Isso [vem acontecendo] mesmo depois da CDRU”, relata uma moradora. Por segurança, ela também não será identificada.

Na altura do Rio Madeira, nas margens da área urbana de Manicoré, há, ainda, dragas de garimpo revirando o solo e poluindo as águas do rio.

Balsa com toras de madeira no Rio Manicoré em agosto de 2022. Foto: Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim)

“Já me ofereceram trabalho aí nessas balsas de garimpo do Madeira, mas eu disse não. Depois disso, uns homens apareceram na porta de casa com um amigo meu para tentar me convencer”, conta um ribeirinho que nasceu em uma das comunidades e hoje vive na área urbana.

De fato, o trânsito de balsas demonstra que a paisagem preservada das florestas de Manicoré tem mudado na última década: o território por onde se estende o município registrou mais de 150 km2 desmatados apenas no primeiro semestre de 2022. A quantidade já é maior que o desmatamento ocorrido nos doze meses de 2021, quando o município bateu recorde histórico, com 134,7 km2 devastados, segundo dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes/Inpe).

“A gente já fotografou [as balsas de madeira], mandou para o MPF, fez ofício pedindo para fiscalizar e nunca recebemos nenhuma resposta. É por isso que queremos que essa área seja uma RDS, para frear esse desmatamento”, diz a presidenta da Caarim, Maria Clea.

Quanto ao garimpo, dados da Agência Nacional de Mineração levantados pela Mongabay mostram que existem 19 requerimentos de lavra garimpeira para uso industrial ativos em Manicoré.

Sobre as denúncias, a reportagem procurou o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério Público do Amazonas. O Ibama não respondeu os questionamentos e o MP-AM afirmou que as denúncias dos comunitários são objeto de inquérito civil no Ministério Público Federal.

“Agora, estamos preocupados em como será o desmatamento nesse semestre. Estamos vendo que se os próximos meses forem igual a maio e abril, os desmatadores virão com tudo”, diz Clea.

Em março, mês em que o território do Rio Manicoré passou a ser protegido pela CDRU, o Greenpeace flagrou um desmatamento de 1.900 hectares no meio da floresta nativa. Em agosto, a organização voltou a sobrevoar a região e registrou uma queimada de grandes proporções na área desmatada, cuja fumaça chegou inclusive a encobrir o céu de Manaus, a cerca de 330 quilômetros dali.

Queimada registrada em agosto de 2022 dentro da CDRU do Rio Manicoré em área desmatada em março. Foto: Christian Braga/Greenpeace

O levante de mulheres ribeirinhas

Maria Clea e Marilourdes lutam há 16 anos pela criação da RDS do Rio Manicoré. Elas se conheceram ao acaso em 2006, durante um deslocamento de voadeira, espécie de canoa motorizada, pelo Rio Manicoré — os rios funcionam como ruas e estradas para os ribeirinhos, uma vez que não há vias terrestres que liguem uma comunidade a outra. Algumas comunidades estão a horas de barco da sede do município.

“Começamos a conversar sobre a situação do Manicoré e descobrimos que nós duas tínhamos criado associações em nossas comunidades. Pensamos: ‘Por que a gente não cria uma associação geral?’”, conta Clea, conhecida na região por histórias como a vez em que entregou nas mãos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma carta pedindo energia elétrica para as comunidades do Rio Manicoré.

Antes de fundarem oficialmente a Caarim, o primeiro passo da dupla foi descobrir “quem era o dono do rio”, como diz Clea, uma vez que os ribeirinhos que habitam o local há décadas não têm escritura das terras por essas serem florestas públicas não destinadas.

“Descobrimos que as terras são do estado (Amazonas) e buscamos orientação do Incra para saber o que poderia ser feito para nos proteger. Foi aí que nasceu a ideia de se criar uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável”, explica a agricultora.

A professora Marilourdes lembra com orgulho que, quando nasceu a Central das Associações, ribeirinhos de todas as comunidades apoiavam a criação da reserva.

“Nos primeiros anos, nossas reuniões tinham mais de 400 ribeirinhos, mas lá por volta de 2014, começou um movimento contrário. Começaram a espalhar uma conversa de que, se fosse aprovada a reserva, o ribeirinho seria proibido de caçar, pescar, tirar madeira para construir sua casa ou canoa, essas coisas. O comunitário ficou com medo de perder suas terras e a luta foi retrocedendo”, diz Marilourdes.

Segundo as lideranças, os boatos foram espalhados por políticos da região e pessoas ligadas a madeireiros ilegais vindos de Santo Antônio de Matupi, distrito de Manicoré.

A tensão entre apoiadores e não apoiadores piorou em 2015, quando aconteceu uma audiência pública sobre a proposta de criação da RDS do Rio Manicoré e a maioria dos presentes foi contra. “Fomos impedidas de falar nessa audiência pública”, afirma Clea.

Comunitários que apoiavam a Caarim na época relataram ter sofrido intimidações de anônimos, como ter suas voadeiras empurradas no rio para longe de suas comunidades.

O episódio conseguiu desarticular por cerca de quatro anos a luta da professora e da agricultora.

“De 2015 para cá, aumentou muito a grilagem de terras, a pesca ilegal, a extração de madeira da floresta. Os madeireiros colocaram a motosserra para funcionar quando viram que aquela audiência pública não deu em nada”, diz Clea.

  • Considerada uma das áreas mais preservadas da Amazônia, Manicoré tem registrado recordes de desmatamento desde 2015; no primeiro semestre de 2022, foram mais de 150 km2 de vegetação nativa cortados.

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