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Você é feito de quê?

“Você não sabe de onde eu vim. Você não sabe pelo que eu tive que passar.”

Todo e qualquer BBB ou ex-BBB

Nas últimas semanas, tenho pensado bastante sobre essa zona cinzenta que nos define. O papo parece brabo, e pode até ser, mas já pararam para pensar o quanto do que a gente é hoje vem da genética, da referência familiar e do meio? O quanto a vida poderia ser diferente se fôssemos mais altos, tivéssemos mais irmãos, mais ou menos dinheiro? Ou o quanto o que a gente faz hoje é repetição pura do que os nossos pais, avós, e tataravós fizeram? Filósofos, pesquisadores, psicólogos e mais um tanto de profissionais vivem em função de tentar descobrir os segredos desta combinação. Aqui eu sou só uma usuária que sente forte as provocações da literatura e do cinema. E, às vezes, esse sentir faz doer. E, quando dói, a gente grita.

É muito difícil tentar separar algumas referências familiares e de criação de quem somos hoje. Na verdade, eu sinto que é até complicado entender o que é exatamente o quê. A sensação é de uma grande geleia amorfa que mistura coisas simples com outras complexas. Por exemplo: quando eu era pequena achava que só existia arroz integral e feijão marrom (calma, mãe, tudo certo com os dois, eu continuo amando), e só fui descobrir que existiam outras cores de arroz e de feijão quando passei a frequentar a casa de amigos. Eu me lembro como foi mágico – e assustador – saber que existiam outras formas daquilo que eu comia e achava único. Além de uma memória afetiva da minha infância, essa combinação específica virou um marco pessoal de que existiam jeitos diferentes de viver, fazer e escolher que não eram os da minha casa.

O livro e o filme desta semana alcançam esta fronteira: os personagens percebem que existe a possibilidade de uma vida diferente daquela que eles têm em casa, e decidem segui-la. A questão é: o que de fato eles conseguem deixar para trás? É possível tomar decisões e alinhar desejos e expectativas futuras sem levar em consideração a influência perene das nossas origens?

No premiado A metade perdida, de Brit Bennett, acompanhamos a vida das irmãs Vignes, gêmeas idênticas, nascidas e criadas em uma comunidade negra do sul dos Estados Unidos obcecada por novas gerações de pele cada vez mais clara. Elas acabam fugindo desta cidade aos 16 anos e se separando para trilharem caminhos muito diferentes. O leitor segue as histórias de Desiree e Stella e os desdobramentos que implicam suas escolhas: tanto nas próprias vidas quanto nas vidas das filhas que elas vêm a ter. Enquanto a primeira se casa com um homem negro e é obrigada a voltar,  com a filha de pele muito escura, ao lugar que escapou anos antes, a outra é lida como branca e o marido branco não faz ideia sobre o seu passado. Escrito de forma brilhante, tratando de questões como passabilidade – a capacidade de uma pessoa ser considerada membro de um grupo ou categoria identitária diferente da sua – e colorismo, A metade perdida é uma joia rara, destes livros que bagunçam os cenários previamente montados nas nossas cabeças e nos faz retomar às origens, sejam elas quais forem. O lançamento será em maio pela Intrínseca, mas o livro pode ser adquirido em pré-venda aqui.

 

Em Era uma vez um sonho (no original “Hillbilly Elegy, algo como Elegia Caipira) acompanhamos a vida do adolescente J.D., que mora no interior dos Estados Unidos e sofre com diferentes formas de violência em uma família disfuncional. De forma intercalada, vemos também J.D. adulto, numa faculdade famosa, que tenta a todo tempo se manter longe deste núcleo e ambiente que quase o destruiu. A mãe, (interpretada por Amy Adams, incrível) oscila com comportamentos opostos: às vezes parece muito amorosa e às vezes, uma terrorista capaz de matar o próprio filho. A avó (Glenn Close, também impecável) aparenta ser o pilar mais estável dentro desta estrutura familiar doente em um primeiro momento. Contudo, o que a gente percebe com o passar dos minutos é que talvez ela só tenha mais experiência com a dor. Com exceção de um possível verniz aplicado na infeliz ideia de que ele só se tornou quem é por conta das humilhações na infância, o J.D. adulto precisa retornar para cidade que nasceu e foi criado para encarar o passado e as lembranças, a mãe, a irmã, a avó e o avô, a fim de tomar decisões que vão impactar seu futuro. É um drama duro, com belas interpretações, e baseado em uma história real. Em cartaz na Netflix.

 

Acredito que nunca saberemos realmente quais são os ingredientes e as quantidades que formam a geleia que nos une, e talvez seja esse mesmo o grande segredo da vida: receitas únicas formam indivíduos singulares. Hoje, aceitar e melhorar a nossa mistura me parece tão importante quanto provar e buscar entender a mistura dos outros. Principalmente, quando essa mistura assustar, der medo ou parecer tão estranha quanto um prato de arroz branco e feijão preto fora de casa.

Heloiza Daou é movida à palavra e um pouco obsessiva. É diretora de marketing na Intrínseca e também mãe do Tomás, o job mais insano e amado da vida.

 

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