Tramita desde 2019 na Câmara dos Deputados um projeto de lei que reduz em 22 mil hectares a Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, no Acre. De autoria do senador Márcio Bittar (União Brasil-AC) e da deputada federal e pré-candidata ao governo Mara Rocha (MDB-AC), a proposta atende a interesses de ocupantes da unidade que querem expandir o agronegócio na maior área protegida do estado.
O PL 6024/2019 aguarda audiências públicas e o parecer do relator na Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia (Cindra) desde novembro de 2021. No entanto, antes mesmo da possível aprovação, a proposta já causa efeitos nocivos à segunda maior unidade de conservação do país.
A expectativa de reduzir o tamanho da Resex, permitindo atividades hoje proibidas como a pecuária e a agricultura intensiva, tem estimulado invasões. Desde 2019, ocupantes ilegais entram na área, após aliciar os extrativistas e comprar pedaços das terras (que são públicas e portanto não podem ser vendidas) por preços baixos. Desmatam e passam a ocupá-las com pequenas construções de madeira e algumas cabeças de gado. As áreas adquiridas variam de 10 a 100 hectares.
O advogado Gumercindo Rodrigues, da ONG Comitê Chico Mendes, explica que um fluxo intenso de invasões começou meses após a apresentação do projeto de lei. “Eles acham que podem ser beneficiados pelo PL. Por isso, promovem a ocupação rápida, para depois dizerem ‘estamos aqui, e agora queremos ser regularizados também’”, afirma.
Muitos visam apenas o lucro com a revenda imediata dos terrenos. Outros mantêm o imóvel na esperança de terem as propriedades valorizadas no futuro, com os precedentes abertos pelo PL, que quer garantir que famílias sem perfil extrativista sigam ocupando a Resex sem interferências do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão fiscalizador da área.
“Querem as terras da reserva para tráfico de madeira e criação de gado”, denuncia o morador da unidade Julio Barbosa, membro da Associação dos Produtores da Resex Chico Mendes em Xapuri (Amoprex).
Desmatamento e queimadas dentro da Reserva Chico Mendes, em 2019. Foto: Ramon Aquim
As ocupações ilegais são feitas por moradores dos sete municípios sobrepostos à reserva. Contudo, um fenômeno mais recente chama a atenção: o avanço de grileiros de Rondônia, que já seriam a maioria dos ilegais na região da Resex em Xapuri, conforme denunciado pelos moradores e confirmado por um gestor do ICMBio que não quis se identificar.
Não há dados oficiais sobre as invasões dos acrianos e rondonienses à Resex Chico Mendes. O servidor da autarquia federal disse ao InfoAmazonia e PlenaMata que a estimativa extraoficial é de que 20% dos cerca de 15 mil habitantes da reserva são ilegais. As ocupações geralmente acontecem próximas às estradas e ramais [vias secundárias].
A grilagem na reserva gerou uma escalada do desmatamento. Em 2019, quando o PL foi apresentado e as invasões se intensificaram, o desmatamento na Resex mais que triplicou em relação ao ano anterior, com 76 km² de florestas derrubadas ante os 21 km² de 2018, segundo o Prodes, do Inpe.
No ano passado, foram perdidos 88 km² de matas, a maior taxa desde 2008. Mais de 57% do desmatamento nos últimos 14 anos ocorreu entre 2019 e 2021: foram 223,2 km² de áreas abertas nesses três anos, o que a tornou a segunda reserva mais desmatada da Amazônia no período (atrás apenas da Resex Jaci-Paraná, em Rondônia). Hoje, 9% de toda a Resex (cerca de 900 km²) estão desflorestados.
“Como a gente, que vive da extração da seringa e da castanha, vai conseguir se manter vendo essa floresta se acabar ano a ano por conta das invasões? Falta fiscalização e autoridade”, lamenta a extrativista Jocilene Gomes, que nasceu na reserva, onde ainda vive com o marido e três filhas na região de Xapuri, no Seringal Campeira.
A Resex Chico Mendes possui importância estratégica para o leste do Acre, resguardando importantes bacias de água que abastecem as cidades, como o rio Acre e o Iaco. Protege ainda duas terras indígenas adjacentes, a Mamoadate, dos Manchineri, e a Cabeceira do Rio Acre, dos Jaminawa.
O que diz o PL
Para justificar a redução da Resex Chico Mendes, o texto do PL 6024 argumenta que as áreas a serem desmembradas da reserva já eram ocupadas por “pequenos produtores rurais” antes da sua criação, em 1990, e que a ausência de perfil extrativista desses moradores os coloca em conflito com o ICMBio.
O advogado Gumercindo Rodrigues, no entanto, rebate. Ele afirma que essas áreas foram ocupadas pelas bordas após a criação da reserva. “Ali eram seringais, e esse pessoal foi comprando pedaços, entrando, expulsando famílias e ocupando. Uma ou outra área estava antropizada [com características originais modificadas], mas não passavam de pequenas manchas nas imagens de satélites. A verdade é que esse PL veio para legitimar o crime. E isso abre um precedente perigoso, como já estamos vendo”.
A reportagem procurou a deputada federal Mara Rocha, por meio de sua assessoria, para explicar as motivações para propor o PL, mas não obteve retorno até a publicação.
Um dos ocupantes a ser beneficiado pelo projeto de lei é Rodrigo Oliveira Santos, indiciado por invasão e desmatamento ilegal na Resex e por ameaça de morte ao servidor do ICMBio Fluvio Mascarenhas, após ser multado pelo agente por derrubada de floresta. Nos autos de um processo contra ele, consta informação de que o fazendeiro comprou a terra em 2003, mais de uma década após a criação da unidade. Ex-candidato pelo MDB a vice-prefeito de Epitaciolândia, interior do Acre, Santos se diz “o idealizador do PL” e grande mobilizador de apoio político para a causa.
Em entrevista ao InfoAmazonia e PlenaMata, ele nega que tenha chegado à área após a demarcação. “Nasci lá dentro, em 1986, na propriedade do meu pai, que sempre trabalhou com agricultura e pecuária. O ICMBio foi quem roubou nossa terra. Logo, o invasor não sou eu”, disse Santos, que teve de deixar a reserva por decisão judicial de segunda instância no processo que responde por invasão. “Mas irei voltar, porque vamos aprovar o PL”, desafia.
Desmonte do ICMBio
As invasões à Resex Chico Mendes são favorecidas por outro problema: a falta de pessoal e equipamentos para fiscalizar as infrações. Hoje, o posto do ICMBio no território possui três analistas e dois técnicos para cuidar dos 970 mil hectares de reserva e está sem comando geral. O último gestor da área, Fluvio Mascarenhas, funcionário de carreira do ICMBio ameaçado de morte pelo idealizador do PL, foi exonerado do cargo em junho deste ano após quatro meses na função. Segundo Julio Barbosa, da Amoprex, a posição contrária do servidor ao PL foi o motivo da queda.
“Fluvio tinha relação muito boa com as associações locais. Ele trabalhava com a gente um plano para resolver diversos gargalos. A partir do momento em que se alinha aos movimentos anti-PL, ele cai”, diz. A informação foi confirmada por um outro funcionário do ICMBio que não quis se identificar.
O servidor exonerado planejava ainda uma série de operações contra as invasões, além da retomada das reuniões do conselho deliberativo, onde os moradores debatem demandas e soluções para os problemas. Segundo denúncias à reportagem, infratores ambientais com fortes ligações políticas teriam pedido a exoneração de Fluvio e tiveram sua demanda facilitada e atendida por mandatários do Acre com influência no governo federal.
Entre esses infratores estariam uma criadora de gado que possui um haras dentro da Resex, um condenado pela Justiça Federal por desmatamento na unidade, e o já citado Rodrigo Oliveira Santos. “Não tenho força para demitir ninguém”, afirma o fazendeiro, sobre a interferência na exoneração de Fluvio. “Mas temos, sim, falado por aí sobre a necessidade de substituir funcionários que não têm o perfil para administrar a reserva, porque o canalha do Fluvio é um ativista ambiental, não é um funcionário público isento. Isso deve ter sensibilizado algum político, que mexeu seus pauzinhos”.
Em novembro de 2019, mês em que o PL foi apresentado, uma reportagem da Folha de S. Paulo revelou que os três infratores foram até Brasília se reunir com o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles para reclamar da atuação do ICMBio na Resex. Dias depois, as fiscalizações na unidade foram suspensas temporariamente. A deputada federal Mara Rocha, que apresentou o projeto de lei, participou da agenda, ao lado de outros cinco parlamentares acrianos, como mostrou a reportagem da Folha de S. Paulo.
Recentemente, outro servidor do ICMBio que atuava na fiscalização da Resex foi ameaçado de morte e precisou tirar férias com urgência para fora do Brasil para se proteger.
De acordo com a ativista Angela Mendes, o desmonte do órgão federal na unidade que leva o nome de seu pai é deliberado e se intensificou após o PL 6024. Ela denuncia ainda que narcotraficantes também se aproveitam da situação, obtendo terras na unidade para esconderijo e uso dos ramais como rotas alternativas para o transporte de drogas e armas. “Em algumas localidades, eles ameaçam os moradores, proibindo-os de circular nas vias onde adquiriram propriedades. É uma situação caótica, e ninguém faz nada porque o ICMBio está totalmente desestruturado”.
A exoneração de Fluvio foi um duro golpe para as comunidades organizadas da Resex Chico Mendes. Cinco sindicatos e associações que representam trabalhadores rurais da unidade emitiram nota de repúdio ao afastamento do servidor, alegando que não foram consultados. Há ainda o temor de que a ausência de gestão a poucas semanas do verão amazônico crie cenário propício ao aumento do desmatamento e das queimadas. Procurado, o ICMBio não comentou as denúncias e se tem planos para nomear outro gestor para a área.
“Com essa constante mudança de comando você não consegue fazer com que o trabalho de gestão na Resex seja continuado. E as políticas para aquela população não se consolidam nunca”, comenta Daniela Dias, coordenadora de projeto da ONG SOS Amazônia. Ela explica que o PL 6024 e seus efeitos indiretos, como as invasões, estão inseridos em uma estratégia maior de avanço da fronteira do agronegócio e do desmatamento no Acre.
“Há uma clara tentativa de desmontar o conceito e objetivo da reserva extrativista, que é o de manter as florestas. É um conjunto de não-fazeres que cria o cenário para que consigam justificar o PL e as ocupações. Paralelo a isso, os governos atuais não concretizam políticas de incentivo à economia florestal, que é o que garante a permanência das populações tradicionais nesses territórios e a manutenção das matas”, resume Dias.
Pressão também sobre a Serra do Divisor
O PL 6024 quer ainda modificar a categoria do Parque Nacional da Serra do Divisor, no oeste do Acre, transformando-o em área de proteção ambiental (APA), classificação menos restritiva. A unidade de proteção integral abriga povos indígenas isolados e uma das maiores biodiversidades do planeta. Ao transformá-la em APA, o projeto permitirá a exploração econômica das riquezas naturais e a construção de mais uma rodovia entre o Acre e o Peru, que cortará ao meio o território, como explicou Johannes van de Ven, diretor-executivo da Good Energies Foundation, em artigo para o PlenaMata. O InfoAmazonia denunciou o caso em reportagem especial no início deste ano.
A estrada entre o Acre e o Peru quer encurtar o caminho do Brasil a mercados e portos marítimos do país andino, facilitando o envio de commodities agrícolas para a Ásia, em especial para China, país que em 2021 respondeu por 34% das exportações do agronegócio brasileiro. Cerca de R$ 500 milhões foram reservados à rodovia no Orçamento da União, e uma empresa já realiza os estudos técnicos para a implantação da obra. O projeto da rodovia, no entanto, vem sendo alvo de uma queda de braços judicial desde o ano passado.
Para Miguel Scarcello, da SOS Amazônia, um dos autores de uma ação civil pública que pede a suspensão do contrato de execução da estrada, a real intenção da obra é abrir a Serra do Divisor à especulação de terras e à pecuária. “Não duvido que, quando a rodovia chegar até as comunidades que vivem nas margens do território, aqueles produtores vão perder suas propriedades. Como não acredito em reversão na condução política do processo, estamos resolvendo na Justiça”, explicou.
Em fevereiro deste ano, o Ministério Público Federal (MPF) se manifestou contra a estrada, afirmando que seria o maior desastre socioambiental das últimas décadas no Acre. “A obra está fadada ao ostracismo e à inutilidade”, assinala o parecer.
*As informações são da INFOAMAZONIA/PLENA MATA