*Da Redação Dia a Dia Notícia
Neste mês, completam-se 90 anos que as mulheres do Brasil conseguiram o direito de votarem e serem votadas. O avanço veio pelo Código Eleitoral assinado pelo presidente Getúlio Vargas em 24 de fevereiro de 1932. Até então, o poder público era legalmente um feudo masculino.
Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, revelam que os homens retardaram ao máximo a inclusão das mulheres na vida política. Das primeiras discussões parlamentares à histórica canetada de Vargas, passaram-se quase 40 anos.
Foi durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1890-1891 que a possibilidade de liberação do voto feminino apareceu pela primeira vez na arena política, alimentada pelas promessas da nascente República de modernizar o Brasil.
— É assunto de que não cogito. O que afirmo é que minha mulher não irá votar — discursou, categórico, o senador Coelho e Campos (SE) em 1891.
Para conservar as mulheres afastadas das urnas e do poder, os senadores e deputados adversários do voto feminino recorreram a argumentos preconceituosos e depreciativos. Segundo esse grupo da Constituinte, elas precisavam continuar restritas às quatro paredes do lar porque, caso os homens perdessem o domínio sobre elas, o país sofreria uma convulsão social.
Em tom poético, o deputado Serzedelo Correa (PA) afirmou:
— A mulher, pela delicadeza dos afetos, pela sublimidade dos sentimentos e pela superioridade do amor, é destinada a ser o anjo tutelar da família, a educadora do coração e o apoio moral mais sólido do próprio homem. Jogá-la no meio das paixões e das lutas políticas é tirar-lhe essa santidade que é a sua força, essa delicadeza que é a sua graça, esse recato que é o seu segredo. É destruir, é desorganizar a família. A questão é de estabilidade social.
O deputado Pedro Américo (PE), já famoso por ter pintado o quadro Independência ou Morte, evitou os floreios:
— A observação dos fenômenos afetivos, fisiológicos, psicológicos, sociais e morais me persuade que a missão da mulher é mais doméstica do que pública, mais moral do que política. A mulher normal e típica não é a que vai ao foro, à praça pública nem às assembleias políticas defender os direitos da coletividade, mas a que fica no lar doméstico exercendo as virtudes feminis, base da tranquilidade da família e, por consequência, da felicidade social.
Na mesma linha de raciocínio, o deputado Muniz Freire (ES) disse que, se as mulheres passassem a votar e ocupar cargos públicos, estaria decretada “a concorrência dos sexos na vida ativa”. Ele concluiu:
— Creio que o espírito esclarecido do Congresso não deixará vingar essa tentativa anárquica.
O deputado Barbosa Lima (CE) afirmou que aquele debate era perda de tempo porque, em sua visão, nem as próprias mulheres estavam interessadas no direito de votar:
— Dai à mulher a faculdade de votar, e raríssimas serão as que troquem os encantos da sua nobre empresa [a educação dos filhos] pela ingratidão dos embates eleitorais ou pela secura e aridez das lutas parlamentares.
O deputado Lacerda Coutinho (SC) lembrou que naquele momento, à exceção de um ou outro estado dos Estados Unidos, lugar nenhum do mundo permitia que a mulher votasse. Para ele, essa realidade era compreensível:
— Predominando no sexo masculino as faculdades intelectuais, predominam no feminino as afetivas. Ela tem funções que o homem não possui, e essas funções são tão delicadas, tão melindrosas, que basta a menor perturbação nervosa, um susto, um momento de excitação, para que estas funções se pervertam e as consequências sejam muitas vezes funestas.
Coutinho prosseguiu:
— A conceder-se à mulher o direito de voto, deve-se-lhe também dar o direito de elegibilidade. Imagine-se agora o que seria este Congresso, que já por vezes se torna de um tumultuar comparável às vagas [ondas] oceânicas, se aqui entrasse também o elemento feminino. Achando-nos nós em proporção igual, imagine-se também a fisionomia curiosa que apresentaria este Congresso.
Ao imaginar o Congresso Nacional com mulheres, de acordo com as notas taquigráficas do Arquivo do Senado, alguns constituintes reagiram com gargalhadas.
Para o deputado Lauro Sodré (PA), ainda que o voto feminino fosse aprovado na letra da lei, pouca coisa mudaria na prática:
— É incontestável que, no momento em que nós formos abrir à mulher o campo da política, ela terá necessariamente de ceder diante da superioridade do nosso sexo nesse terreno.
No fim, os argumentos contrários ao voto feminino prevaleceram, e a Constituição de 1891 entrou em vigor sem conceder direitos políticos às mulheres.
A exclusão das mulheres estava tão arraigada na sociedade que a proibição do voto nem precisou ser escrita na lei. A nova Constituição estabeleceu que todos os cidadãos maiores de 21 anos poderiam votar e ser votados, menos os mendigos, os analfabetos, os soldados rasos e os religiosos sujeitos a voto de obediência. As mulheres não apareceram nessa lista de exceções. A proibição ficou subentendida. Pelo costume, as mulheres casadas deviam submissão ao marido; as solteiras, ao pai; e as viúvas, ao filho mais velho.
Uma vez aprovada a Constituição de 1891, os senadores e deputados logo esqueceram o voto feminino. O tema só voltou às discussões parlamentares duas décadas e meia mais tarde. E com força total. O primeiro projeto de lei foi apresentado na Câmara em 1917, pelo deputado Maurício de Lacerda (RJ). O segundo, no Senado em 1919, pelo senador Justo Chermont (PA). No decorrer da década de 1920, apareceram quase dez projetos novos no Parlamento.
Embora os tempos fossem outros, os senadores e deputados resistentes à mudança recorreram aos velhos argumentos dos primórdios da República.
Em 1917, um deputado favorável ao voto feminino lembrou que a Constituição brasileira não impedia as mulheres de ir às urnas e que tal proibição recaía sobre alguns poucos grupos, como o dos religiosos que deviam voto de obediência às suas congregações. O deputado Raul Cardoso (SP) rebateu de pronto:
— Ligada pelo voto de obediência está a mulher ao marido, que sobre a esposa tem o poder marital.
Não foi uma contestação puramente retórica. Nesse momento, o poder marital no Brasil já não era só uma questão de costume. Era também uma determinação legal.
Em 1916, entrou em vigor o primeiro Código Civil brasileiro, e ele estabeleceu que as mulheres casadas eram “incapazes” para certos atos da vida civil. Se quisessem trabalhar, receber herança e até ajuizar ação judicial, por exemplo, precisavam da autorização expressa do marido.
No Senado, o parecer da Comissão de Constituição e Diplomacia a respeito de um projeto de voto feminino afirmou que, como as mulheres não tinham os mesmos deveres políticos dos homens — o alistamento militar, mais especificamente —, elas tampouco deveriam ter os mesmos direitos:
“O anjo terrestre passa a ser um verdadeiro cidadão em toda a extensão da palavra. Mas poderá a mulher ser chamada ao serviço do Exército e da Marinha e combater em defesa da pátria? Poderá, de calça ou de saia, pesado fuzil ao estreito e débil ombro, perneiras apertadas com sapatões de couro grosso, duro quepe a resguardar sedosos cabelos, caminhar através de terras ressequidas ou alagadas, padecendo muita vez o suplício da sede e o flagelo da fome? O chamado belo sexo, por mais exercitado que sejam seus músculos ao ar livre, não terá possibilidade de realizar os empreendimentos todos ao alcance do sexo feio, denominado barbado e forte”.
Com ironia, o parecer da comissão do Senado deu a entender que as mulheres não eram capazes de dar nenhuma contribuição relevante aos negócios públicos:
“Quem poderá a priori afirmar que a mulher, farfalhando com as saias nos colégios eleitorais, cobrindo-se com as plumas dos chapéus nas altas regiões da soberania, decotadas ou não, perfumadas, com as suas mãozinhas delicadas, extensas meias a esconderem a musculatura das pernas, batendo vezes muitas com o tacão [salto] à Luís XV, não concorrerá a melhores dias na direção das coisas públicas, acelerando o progresso dos povos?”.
Mesmo com todas as críticas, o parecer da Comissão de Constituição e Diplomacia concluiu que o projeto era constitucional. Isto é, apesar de discordar do conteúdo, a comissão entendeu que a proposta não contrariava a Constituição e, por essa razão, poderia continuar sendo analisada pelos senadores.
Tanto na Constituinte de 1890-1891 quanto no Senado e na Câmara das décadas de 1910 e 1920, diversos parlamentares, ainda que minoritários, se manifestaram a favor do voto feminino. Um deles foi o deputado Zama (BA), que em 1891 discursou:
— A família não se desorganiza quando a mulher exerce a medicina, a advocacia, o magistério e funções públicas, que exige muito tempo, trabalho e critério. Desorganizar-se-á, porém, pelo fato de ir ela em dia de eleição dar o seu voto? Não, isso não é verdade.
Zama continuou:
— Tenho profunda convicção de que a presença da mulher nos comícios eleitorais será sempre um elemento de ordem e de paz e muito concorrerá para afastar dos pleitos eleitorais o cacete, o punhal e a navalha, tão usados entre nós.
Também na Constituinte, o deputado Costa Machado (MG) refutou a ideia de que o voto feminino levaria à dissolução da família:
— É o combate entre o homem e a mulher, dizem. Os meus contendores querem a harmonia da família fundada nas relações que há entre o amo e a criada, entre a escrava e o senhor, entre a vítima e o seu algoz.
Para ele, seria um absurdo se a República brasileira nascesse sem reconhecer como cidadãos plenos o maior número possível de pessoas:
— Como quereis, senhores, fazer um monumento [a Constituição] belo, sólido, duradouro, se falha é a base? A vossa República, delineada segundo os moldes do absurdo, é o governo de um eleitorado limitado, oligárquico, aristocrático. É uma mentira convencional. O governo republicano não consiste em uma classe de eleitores. Consiste no sufrágio de todos os seus habitantes, uma vez que tenham capacidade.
Costa Machado concluiu fazendo uma previsão:
— A humanidade vindoura pode rir-se de nossa inépcia e dizer: “Como é que os homens desprezaram essa grande força que é a metade do gênero humano, a mulher?”.
No fim da década de 1910, o senador Justo Chermont defendeu a aprovação de seu projeto pró-voto feminino afirmando que isso, além de reparar uma “injustiça secular”, seria um estímulo para o voto masculino:
— Dando o voto político à mulher, à mãe, à esposa, à filha, ela se interessará direta e apaixonadamente pelos negócios públicos, chamará o marido, o filho, o pai ao caminho do dever, e nós teremos a nação governando-se a si mesma, o povo reabilitado com o exemplo das que nos são mais caras na vida. O projeto é um incentivo à nossa regeneração política.
O senador Lopes Gonçalves (SE) também se manifestou a favor dos direitos políticos das mulheres:
— Como é que o Brasil, que pratica a autonomia e a liberdade em toda a plenitude, há de continuar amarrado aos preconceitos, entendendo que a mulher só pode servir para ser dona de casa, arrumar móveis, enfeitar-se, fazer o footing [passear a pé], andar pelos jogos de futebol, dançar, ouvir missa e outras coisas dessa natureza? É preciso que a nação brasileira abra o salão.
O deputado Maurício de Lacerda, autor de outro projeto de lei, resumiu:
— O voto é o exercício de um dever de consciência. E a consciência não veste calças nem saias.
No passado, o analfabetismo era mais alto entre as mulheres do que os homens. Até hoje, é mais alto na população negra do que na branca. Foi apenas em 1985 que saber ler e escrever deixou de ser exigência para obter o título de eleitor.
De acordo com a historiadora, as décadas de luta pelos direitos políticos das mulheres trazem lições para a atualidade:
— A exclusão das mulheres da política no passado pode ser comparada no presente à exclusão ou à baixa representação de certos grupos sociais nos postos eletivos. As próprias mulheres até hoje são minoria no poder. A história da campanha sufragista e a biografia das feministas podem ser um alento e uma inspiração para aqueles que lutam hoje por seus direitos. Ao mesmo tempo, a história daquelas sufragistas ensina que, quando queremos uma mudança, nós precisamos saber que ela não virá de graça nem de uma hora para a outra e que, por isso, precisaremos agir, pressionar, resistir, insistir. Se não fizermos os movimentos, a reforma que desejamos não ocorrerá.
*Com informações da Agência Senado