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O verso de Shakespeare

O nome William Shakespeare e o título de algumas de suas principais obras são muito conhecidos. São tramas bem-costuradas que parecem verdadeiros bordados: ora com linhas coloridas ora com sóbrias, que vão se cruzando, se sobrepondo e criando personagens complexos e enredos inesperados, repletos de detalhes. O que ninguém repara, ou talvez não se interessa, é exatamente como essa construção pontilhada foi feita e arrematada. Para isso, é preciso observar o verso do pano, por onde a agulha passou, e que emaranhados ela precisou escolher deixar para trás a fim de que o bordado, à frente, prevalecesse.

 

O livro Hamnet, de Maggie O’Farrel (Intrínseca), e o filme A pura verdade (disponível no Amazon Prime) nos ajudam a enxergar um pouco do que seria o outro lado desta trama: ambos utilizam as lacunas da história para ficcionalizar o que seria um novo e importante verso do famoso dramaturgo: o bastidor doméstico, fora e além da peça e do palco.

“Você passou tanto tempo colocando palavras na boca dos outros que acha que só é importante o que é dito.”

 

No filme, estrelado e dirigido por Kenneth Branagh, acompanhamos a volta de William à cidade de Stratford após o incêndio no The Globe, seu anfiteatro em Londres. Ele é, então, obrigado a encarar Agnes (Judi Dench) e as duas filhas e a repensar as relações familiares que criou, ou deixou de criar, com essas mulheres. O luto pela morte do filho Hamnet, de apenas 11 anos, é vivido tardiamente, o que gera uma série de desconfortos com suas duas herdeiras, que precisam passar, de novo, pelo resgate do irmão e pela vivência da clara preferência do pai por ele.

 

As escolhas para preencher as lacunas da história no filme são diferentes daquelas feitas por Maggie O’Farrel. No primeiro, Agnes não parece ser a mulher tão forte e emblemática a que somos apresentados pela autora. Falas como “Todos esses anos, Will, pensando na sua reputação. Você pensou alguma vez na minha?” são poucas durante a película, que foca muito na figura do bardo, ainda que também fique claro o funcionamento da sociedade à época: o machismo estrutural e as dificuldades e missões domésticas a que todas as mulheres, jovens ou não, eram submetidas. Inclusive, as próprias filhas de famosos dramaturgos.

 

Já em Hamnet, lançado no início de setembro, temos como foco a história no ambiente familiar gerido e vivenciado por Agnes. Não há uma única menção ao nome de Shakespeare, ele aparece na história como “pai das crianças”, “marido” e “companheiro”.

 

“Dizem que é estranha, exótica, peculiar, talvez louca. Demasiado selvagem para qualquer homem.”, descreviam os olhares curiosos para esta mulher tão à frente de seu tempo, que não se importava com o que pensavam dela, e seguia seus próprios instintos. O mais difícil talvez seja observar que as características que atribuíam a esta mulher, à época, e suas consequentes críticas, são exatamente as mesmas que as mulheres sofrem hoje. O quão será que realmente avançamos?

 

O’Farrel criou um ambiente completamente imagético com seu texto. Ao lermos, somos transportados diretamente para o interior da Inglaterra de 1600, com seus corredores, suas vielas e seus detalhes de roupas e comida. A escolha do tema da morte de Hamnet passa também pela descrição da Peste Bubônica, epidemia que dizimou mais de cinquenta milhões de pessoas na Europa entre 1300 e 1500. E fica difícil esta leitura não mexer conosco vivendo uma pandemia em um cenário tão diferente, mas ao mesmo tempo tão parecido com o descrito pela autora.

 

Hamnet é sobre os bastidores da criação de uma das peças mais célebres de Shakespeare, mas é também uma história a respeito do luto. Sobre o que fazemos com o que sobra de nós quando alguém se vai. Rosa Montero, em A ridícula ideia de nunca mais te ver (Todavia), diz que ninguém supera uma morte de alguém próximo. A gente se reinventa pra sobreviver. Sabemos que Shakespeare transformou a morte do filho e o trouxe à vida novamente por meio de uma obra que criou, mas e essa mãe? O que fez essa mulher? Como foi para ela viver após a morte do próprio filho com outras duas crianças em casa? E a elaboração do luto dela que não virou peça pública? Será que vale alguma coisa?

 

Livro e o filme, cada um na sua forma, redesenham e inserem novos elementos no bastidor deste bordado que conhecemos acerca de Shakespeare, levantando histórias paralelas e valorizando personagens periféricos, colocando-os no foco de luz e reforçando a ideia de que ninguém faz algo sozinho.

Onde há brilho, beleza e imaginação, há trabalho e dedicação de muitos, e obras como essas retomam a humanidade dos gênios, trazendo-os para perto, desenhando o poder da vulnerabilidade e configurando-os como pessoas, assim como todos nós: que acertam, vibram, mas que erram. Principalmente.

*Heloiza Daou é movida a palavra e um pouco obsessiva. É diretora de marketing na Intrínseca e também mãe do Tomás, o job mais insano e amado da vida.

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