*Folha de São Paulo
Em 1970, o presidente-general Emílio Garrastazu Médici deu início às obras da Transamazônica e abriu para colonização uma imensa faixa de floresta no Amazonas e do Pará. Cinquenta anos depois, a Operação Verde Brasil, comandada pelo vice-presidente general Hamilton Mourão, está empregando centenas de soldados para tentar conter o desmatamento e outros crimes ambientais viabilizados pela rodovia.
Um dos palcos da estratégia militarizada de Bolsonaro contra crimes ambientais é Apuí (450 quilômetros ao sul de Manaus). Com área pouco maior do que o estado da Paraíba, o município surgiu do Projeto de Assentamento Rio Juma, no início dos anos 1980, administrado pelo Incra.
Desmatamento aumenta em Apuí (AM)
A meta de distribuir cerca de 7.500 lotes voltados à agricultura familiar, porém, fracassou. A maioria dos beneficiados foi embora em meio um processo de concentração de terras e hoje a economia se baseia sobretudo na pecuária extensiva, principal vetor de desmatamento na Amazônia.
Na imagem superior, família recém-chegada de Rondônia caminha pela rodovia Transamazônica, na zona rural de Apuí, no sul do Amazonas; |
Esse processo de conversão de floresta em pasto ganhou novo impulso desde 2019. Apesar da Operação Verde Brasil, Apuí perdeu 23.186 hectares de janeiro a agosto, 5,1% mais que o desmate de todo o ano passado. Os números são da iniciativa não governamental MapBiomas, que monitora o uso do solo no país.
Os militares, que operam sob a GLO (Garantia da Lei e da Ordem), estiveram duas vezes em Apuí neste ano. Na primeira incursão, de 20 a 26 de junho, o foco era combater o desmatamento, com participação do Ibama -os militares não podem fazer procedimentos como lavrar multas.
Na segunda vez em que esteve em Apuí, em agosto, o Exército apoiou o combate ao incêndio feito principalmente por brigadistas da própria cidade contratados por meio do Prevfogo, do Ibama.
Ações conjuntas de Forças Armadas, Ibama e ICMBio não são novidade da era Bolsonaro. A diferença é que, antes, os militares se limitavam a dar apoio logístico às operações, como acampamentos, transporte de bens apreendidos e deslocamento terrestre, fluvial e aéreo.
Além disso, a presença de soldados tem poder dissuasório sobre os criminosos, quase sempre armados. A inibição, no entanto, é temporária, apenas durante a operação.
Bolsonaro transferiu o comando das operações na Amazônia para os militares desde a onda de queimadas no ano passado. Os fiscais do Ibama acompanham para fazer as autuações, são consultados, mas não têm o poder de decidir sobre alvos e estratégias.
Uma das principais divergências é que, nas operações de que participam, as Forças Armadas proíbem a destruição de equipamentos dos criminosos em áreas de desmate e garimpo, como tratores e escavadeiras, recurso previsto pela legislação.
A inutilização é um das principais ferramentas do Ibama e do ICMBio em locais remotos. Por questões de logística e de segurança, é quase impossível transportar os equipamentos até uma cidade. Agora, os infratores acabam recuperando os bens assim que a operação militar deixa o local.
Outra diferença é a relação com a imprensa. Até Bolsonaro, jornalistas brasileiros e estrangeiros acompanhavam operações do Ibama na Amazônia. As imagens de agentes destruindo equipamentos e prendendo infratores na selva tinham força intimidatória.
Agora, funcionários do Ibama e do ICMBio foram proibidos de dar entrevista. Mourão vetou jornalistas nas operações da Verde Brasil 2. Nos últimos meses, a reportagem fez pedidos para acompanhar os militares, todos negados.
A Folha acompanhou por dois dias uma equipe de fiscais do Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), do governo estadual. O objetivo era confirmar in loco desmates apontados por satélites e autuar criminosos em flagrante. Apesar de promessas de apoio do Exército, a escolta foi feita por PMs.
No primeiro dia, a equipe percorreu 100 quilômetros pela rodovia Transamazônica e depois entrou em uma estrada vicinal. Após 15 quilômetros de mata fechada, o comboio chegou a um desmate recente, com pasto recém-plantado brotando entre troncos queimados.
Pouco mais adiante, havia uma área de 30 hectares recém-desmatada. Grandes árvores derrubadas e queimadas se amontoavam.
A casa que parecia ser a sede da fazenda estava vazia. Mais adiante, havia uma moto parada com uma bainha de facão sobre o banco. A pessoa que estava no local havia se escondido no mato após ouvir a chegada das caminhonetes, avaliaram os policiais.
O segundo dia teve uma rotina parecida: estrada precária e nenhum flagrante. Mas a área recém-desmatada era bem maior, 400 hectares.
O Ipaam informou que, nos dias acompanhados pela Folha (24 e 25 de agosto), os desmatamentos identificados somaram 2.429 hectares, mas não houve, até agora, emissão de multa ambiental ou embargo porque não foi possível identificar os responsáveis.
As dificuldades de combate ao desmatamento fizeram o secretário do Meio Ambiente do Amazonas, Eduardo Taveira, reduzir as metas. Em junho, ao lançar a Operação Curuquetê 2, ele afirmou que o objetivo era reduzir a área desmatada no Amazonas em 15% de agosto de 2020 a julho de 2021. Agora, diz, já seria ótimo resultado se o desmate não continuar crescendo.
Taveira afirma que a atuação do governo estadual é limitada devido à predominância do desmatamento em terras públicas federais -80% do total. Nesses casos, o Ipaam só pode fiscalizar caso as atividades sejam passíveis de licenciamento ambiental estadual.
Sobre a Verde Brasil, Taveira diz que há proximidade com o governo Bolsonaro e o Comando Militar da Amazônia e que o Amazonas tem recebido apoio logístico, mas aponta falta de coordenação.
Via assessoria de imprensa, o Ministério da Defesa informou as datas erradas em que a Operação Verde Brasil operou em Apuí e não forneceu informação específica sobre resultados da atuação das Forças Armadas no município.
A Operação Verde Brasil 2 começou em 11 de maio e tem a previsão de término para 6 de novembro, passível de prorrogação. De 11 de maio a 10 junho, o custo do emprego de meios e efetivos das Forças Armadas foi estimado em R$ 60 milhões. Para o período seguinte, a estimativa é de custo mensal de R$ 70 milhões.
Estudo recém-publicado sobre 35 anos de política fundiária em Apuí mostra que o município já apresentava desmatamento acelerado antes de Bolsonaro. De 2013 a 2018, o percentual de crescimento foi mais que o dobro do que no restante da Amazônia.
O estudo, que tem os pesquisadores Gabriel Cardoso Carrero e Philip Fearnside entre os autores, foi publicado na revista Environmental Management. O texto aponta que o avanço da pecuária mostra que Apuí faz parte de uma demanda de mercado por carne bovina, mas também aponta a atuação de grupos criminosos que usam o desmatamento e o plantio de pasto para a grilagem de terras públicas.
O artigo diz que ainda é preciso identificar quem são os grileiros, quem financia as derrubadas e como diferentes atores agem.
Há 40 anos na região, o pecuarista Paulo Lopez afirma que os grandes desmatadores são de fora de Apuí. Segundo ele, o mercado de terras tem se valorizado com a chegada de compradores de terra de Rondônia, onde a agricultura comercial avança sobre a pecuária.
Para Lopez, o combate ao desmatamento passa pela regularização fundiária, promessa não cumprida de sucessivos governos federais. “Não sei em quantas reuniões eu já fui para anunciar que vai ser feita a regularização fundiária. Não sei se não foi feito por falta de vontade do governo, incapacidade”.
Segundo o secretário do Meio Ambiente de Apuí, Domingos Bonfim, a regularização fundiária é ínfima no município. Mesmo entre os assentados do Incra, diz, nem 5% possuem o título definitivo. Para avançar, no entanto, é preciso resolver o passivo ambiental criado por anos de desmatamento ilegal.
“Há esse paradoxo. Não tem regularização fundiária para avançar a regularização ambiental. E, para avançar na regularização ambiental, é preciso ter a regularização fundiária.”
*Este projeto foi patrocinado pela Climate News, um site britânico de notícias climáticas/ Folha de São Paulo.