Roraima está prestes a legalizar o garimpo, medida apoiada por políticos locais e cooperativas de mineração como uma forma de criar empregos e renda em um dos estados menos desenvolvidos do Brasil.
O novo projeto de lei, aprovado em 13 de janeiro pela Assembleia Legislativa do estado, aguarda a assinatura do governador de Roraima, Antonio Denarium, aliado do presidente Jair Bolsonaro.
A lei não permitirá a mineração em terras indígenas ou em áreas de proteção ambiental, mas legalizará o garimpo nas terras do estado sem estudos prévios, além de permitir o uso de mercúrio – que é tóxico – no processamento do ouro e de prever a expansão do tamanho das áreas de mineração, conta o Mongabay.
Grupos de indígenas e de defesa dos direitos humanos do estado alegam que a medida, se for sancionada pelo governador, causará danos irreparáveis para os rios e ecossistemas dos quais as populações locais dependem para obter alimento e água doce. É provável, segundo eles, que também causem o aumento de invasões a reservas indígenas, resultando num crescimento do desmatamento ilegal e de conflitos violentos.
“Hoje temos um problema grave com o impacto do garimpo dentro das terras indígenas”, diz Ivo Aureliano, advogado do Conselho Indígena de Roraima (CIR). “Com essa lei, acreditamos que esses impactos, essas violações de direitos, piorarão muito.”
No dia 21, representantes do Conselho Indígena de Roraima (CIR) se encontraram com promotores do Ministério Público de Roraima e entregaram um documento apontando os riscos da nova lei. Eles também denunciaram ameaças crescentes a líderes indígenas da região de Tabaio, em Alto Alegre, um município que abrange parte da reserva Yanomami.
As terras indígenas de Roraima – entre as quais a maior é a Terra Indígena Yanomami – são ricas em riquezas minerais e já sofrem com a rápida expansão do garimpo ilegal de ouro, especialmente desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência em 2019. O presidente há muito defende que a função dos garimpeiros deveria ser protegida legalmente. Em fevereiro de 2019, ele apresentou um projeto de lei, ainda não aprovado, permitindo a mineração comercial em reservas indígenas sem necessidade de consentimento.
Aureliano, do CIR, diz que a legislação proposta em Roraima, fruto da pressão de apoiadores de Bolsonaro no estado, representaria um risco especial para os povos indígenas durante a segunda onda da pandemia de covid-19 atualmente em curso, bem como os exporia à coerção e à violência.
Em junho passado, a Hutukara Associação Yanomami informou que dois jovens indígenas foram mortos a tiros na reserva por garimpeiros que chegaram de helicóptero. Em dezembro, dois garimpeiros foram mortos depois de terem sequestrado duas adolescentes indígenas.
A TI Yanomami há muito sofre com incursões ilegais do garimpo. Nos anos 1980, dezenas de milhares de garimpeiros invadiram o território, e antropólogos afirmam que cerca de 14% dos indígenas na reserva morreram de doenças ou da violência decorrente. Em 1992, a terra foi demarcada pelo governo federal e muitos garimpeiros foram embora. Mas em 1993, 16 indígenas Yanomami foram assassinados por garimpeiros num conflito que ficou conhecido como o Massacre de Haximu.
Um dos assassinos, Pedro Emiliano Garcia, o único brasileiro vivo a ser condenado por genocídio, foi preso de novo recentemente na capital de Roraima, Boa Vista, com uma grande quantidade de ouro, acusado de operar um garimpo ilegal na reserva e uma rede ilícita de transporte e logística na região.
“Ameaças a líderes, mortes de indígenas, coerção de mulheres indígenas, trabalho escravo, coerção com promessas de ganhar dinheiro, aumento do consumo de álcool dentro das terras indígenas… tudo isso já está acontecendo”, diz Aureliano. Com a sanção da nova lei, diz ele, “poderemos ver um verdadeiro genocídio de povos indígenas”.
Em 2019, primeiro ano da gestão Bolsonaro, estimou-se em 20 mil o número de garimpeiros ilegais atuando entro da reserva Yanomami.
Uma nova corrida do ouro
Críticos observam que o estado já não tem uma infraestrutura de fiscalização nem capacidade de proteger adequadamente as terras indígenas. Eles acrescentam que a nova lei, mais permissiva, provavelmente atrairá um fluxo de milhares de novos garimpeiros para Roraima – também atraídos pelos altos preços do ouro, a cerca de R$ 320 por grama no mercado global, em meio à crise econômica causada pela covid-19 no país –, o que sobrecarregaria os órgãos de proteção indígenas e ambientais já em dificuldades, abrindo as áreas de conservação à invasão. As reservas indígenas cobrem 46% do território de Roraima.
“A mineração ilegal que está acontecendo na reserva Yanomami já está atraindo muitas pessoas para o estado. A nova lei criará uma nova corrida do ouro”, explica Fábio Almeida, historiador com formação em gerenciamento ambiental que vive em Roraima. Ele recentemente se candidatou à prefeitura de Boa Vista pelo PSOL.
Almeida acrescenta: “Como dizem no garimpo, a fofoca do ouro já estourou”. Com a aprovação da nova lei, “o que eles estão dizendo é que o garimpo foi liberado em Roraima.”
Diferentemente dos estados da Amazônia onde o garimpo também é um problema – incluindo o vizinho Pará, por exemplo –, Roraima atualmente não permite nenhuma operação de mineração artesanal.
Com a legalização do garimpo no estado, especialistas alertam que será muito mais fácil fazer com que o ouro retirado ilegalmente de dentro das reservas indígenas ou traficado entre o Brasil e a vizinha Venezuela passe por ouro legalizado.
Fontes do Ministério Público e da Polícia Federal observam que, em outros estados da Amazônia onde o garimpo já é legalizado, é comum o ouro ilegal ser registrado falsamente como legal pelos compradores, que o atribuem a uma licença de mineração um processo chamado de “esquentar” o ouro, mas também conhecido mais amplamente como lavagem.
Os Yanomami são contrários às políticas indígenas do governo Bolsonaro. O grupo indígena se posicionou fortemente contra a nova lei de garimpo. Foto: cortesia do ISA.
Oposição à lei do garimpo de Roraima
Apesar desses possíveis problemas, os deputados estaduais de Roraima (alguns dos quais, segundo críticos, têm relações próximas com fornecedores de equipamentos e maquinários de mineração) votaram em peso a favor da lei na semana passada, com quinze deputados a favor e apenas dois contra.
“Não houve uma discussão ampla na sociedade. Não houve uma audiência pública com órgãos ambientais, pessoas que entendem os impactos”, afirma Evangelista Siqueira, deputado do PT que votou contra a lei.
As críticas de Siqueira ecoam as de uma ampla variedade de grupos da sociedade civil, que pediram, numa carta, que a lei fosse rejeitada.
“Quem são os grupos favorecidos com a aprovação desse projeto de lei? Quais são os interesses do estado na aprovação de uma lei dessa magnitude tão rápido?”, dizia a carta.
O Ministério Público Federal de Roraima abriu um procedimento para investigar se a lei estadual é constitucional.
A lei também inclui várias emendas que receberam críticas. Uma delas permite o uso de mercúrio pelos garimpeiros – a substância, usada no processo de amalgamação do ouro, é altamente tóxica, ligada a defeitos congênitos e outras doenças debilitantes.
Outra emenda expandiu o tamanho proposto das áreas de mineração: de 50 hectares, antes limitados a indivíduos, para 200 hectares destinados a cooperativas de mineração com mais de 2 mil membros.
O governador Denarium, que enviou o projeto de lei para a Assembleia, defende a medida e diz que ela é benéfica para o desenvolvimento da economia de Roraima. “Hoje, todo o ouro produzido no estado passa por debaixo do pano, mas com a regularização do garimpo, a comercialização do minério pode ser feita aqui com a emissão de notas fiscais”, declarou à imprensa.
A Mongabay escreveu para o gabinete do governador mas não recebeu nenhuma resposta até a publicação.
O advogado do Conselho Indígena Aureliano rebate: “Se a mineração trouxesse desenvolvimento, Roraima já seria o estado mais desenvolvido do país.”