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“Coisas do Coração”: biografia de Kika Seixas revela lados de Raul

Um dos baús mais bem guardados de todos os baús deixados por Raul Seixas, as memórias de Kika Seixas, casada com o artista baiano entre 1979 e 1984 e com quem teve a filha Vivian Seixas, renderam um importante livro aos fãs e pesquisadores da música brasileira.

Apenas Kika pode falar com propriedade e emoção, para além de documentos, entrevistas e imagens nas quais outras biografias se baseiam, dos instantes íntimos de glórias e das muitas quedas de Raul, uma das personalidades mais complexas e desafiadoras do pop brasileiro, o ser que encerrou a mais perfeita tradução do espírito rock and roll em seus limites e entregas desde que os primeiros roqueiros começaram a surgir. Ninguém foi mais longe nisso por aqui, conforme as memórias de Kika reforçam, do que Raul Seixas.

Antes da leitura, é bom não cair em uma querela semântica. Coisas do Coração, o nome do livro, é, antes de ser uma nova biografia de Raul, uma autobiografia de Kika Seixas. Claro que as duas histórias se entrelaçam e correm juntas, mas a narrativa em primeira pessoa feita por Kika, em parceria e ajudas no texto, apuração e organização de Toninho Buda, a torna mais íntima, dramática e sem o distanciamento diplomático que as biografias precisam ter de seus biografados.

Existem ali também os documentos e inserções de reportagens sobre Raul, mas, a partir do instante em que o músico passa sobretudo a beber mais e a sentir os sinais de uma deterioração do corpo e da mente, o livro se torna corajosamente angustiante.

A erosão da figura de Raul Seixas pela ação da cocaína e do álcool consumidos em doses incessantes não é uma novidade, mas a força que estes episódios ganham ao serem contados por quem viveu a seu lado com uma filha pequena é cortante.

O texto não tem os subterfúgios do humor que Rita Lee, por exemplo, consegue imprimir magistralmente à sua biografia. Kika e Toninho narram tudo, mesmo os episódios da infância do roqueiro, com a tensão do que está por vir.

Depois de narrar o episódio de 1982, no qual Raul se tornou suspeito de não ser Raul para cerca de 300 fãs que assistiam a seu show em Caieiras – uma cinematográfica passagem em que, de tão bêbado, Raul, ameaçado de espancamento, acabou sendo conduzido à delegacia e preso até provar que era ele mesmo -, Kika expõe, pela primeira vez, suas impressões devastadoras:

“Essas situações complicadas, como esse episódio de Caieiras, só me deram mais certeza de que ele estava bebendo descontroladamente e sem condições de administrar situações e conflitos. Não conseguia se apresentar de forma minimamente decente: saía do compasso, deixava os músicos desorientados e isso transparecia para o público e comprometia tudo”.

Algumas linhas à frente, ela aperta: “Raul usava a cocaína como estimulante e se sentia melhor, mas depois ficava extremamente deprimido pela falta de canalização de sua criatividade, pois não estava gravando nem fazendo shows. Com isso, ele afundava cada vez mais no álcool e na depressão”. Até chegar ao fato que só os cônjuges podem relatar: “Um dia, percebi que ele se trancava no banheiro para tomar o álcool de limpeza que eu comprava no supermercado”.

Numa conversa com a reportagem há alguns anos, o compositor e guitarrista Roberto Menescal falou sobre o dia em que percebeu que Raul Seixas, o personagem, havia engolido o homem. Raul apontou para o céu e perguntou se Roberto não estava vendo o mesmo disco voador que ele via. O bossa-novista disse que não, mas percebeu que, mesmo sem estar aparentemente embriagado ou drogado, Raul acreditava seguramente na imagem de um disco voador. “Ali, percebi que o homem havia dado lugar ao personagem”, disse Menescal.

Raul, assim, teria sucumbido ao próprio mito que viu nascer em sua aura, a partir de um determinado momento, à sua revelia? Kika conta no livro que ele se incomodava muito com as pessoas que chegavam querendo tocá-lo ou beijar sua mão.Era, em tese, a imagem da idolatria à qual ele mesmo ridicularizava na essência de suas músicas, conforme a reportagem do Diário do Nordeste.

Mas um fato aparente é que Raul, o pai da pequena Vivian e marido de Kika, não conseguiu ser mais forte do que o Raul imagem e estereótipo esponja do mais fiel conceito de roqueiro autodestrutivo que dizia respeito a muitos de seus fãs.

Quando esse Raul existia da porta de casa para fora, as cenas e causos que protagonizava poderiam até alimentar um anedotário delicioso de ser narrado. O problema era quando estava diante de suas duas meninas, Kika e Vivian. “Eu ainda tenho vontade de chorar quando me lembro”, diz Kika ao jornal Estado de São Paulo. “A gente foi se afastando, ele foi se afastando.”

Uma história linda de pai e filha, aparentemente corriqueira mas tão singela, conta do dia em que o peixinho de Vivian morreu no aquário da casa. Para que ela não ficasse triste, Raul criou uma fábula fascinante, que terminava com a mãe do peixinho vindo buscá-lo enquanto Vivian dormia. Esse era o pai Raul, até que as coisas começaram a mudar.

“Era como se a bebida trouxesse uma espécie de outro Raul, o personagem. Ele voltava para casa e já não era mais aquele homem amoroso. O palco queria isso dele. Quando vi que não teria mais jeito, eu fui embora.” Raul representava personagens mesmo diante de especialistas viabilizados por Kika para que ele pudesse se tratar. “Ele entrava no consultório diante de um ou dois médicos e não se abria, não falava, não aceitava o alcoolismo. Um dia, uma médica homeopata me disse: ‘Ele não fala, está sempre representando’.”

Antes mesmo de começar a entrevista, Kika faz um agradecimento ao jornalista. Ela se lembra de um instante em que apenas a Gravadora Eldorado, braço fonográfico do Grupo Estado, ligou fazendo um convite a Raul.

“Um rapaz chamado João Lara Mesquita, que eu não conhecia, nos ligou. Era 1982, Raul tinha lançado o álbum Abre-te Sésamo, e tido uma crise de pancreatite. O disco não emplacou e ele havia ficado no hospital muito deprimido. Esse convite da Eldorado nos chamando a lançar um álbum quando ninguém queria Raul foi um gesto lindo, temos uma gratidão eterna.” A história é contada no livro com mais detalhes.

Kika fala também do quanto o roqueiro também baiano Marcelo Nova, do Camisa de Vênus, foi importante na fase final de Raul, levando-o para gravar o elogiado álbum A Panela do Diabo, lançado em 1989. Ao ser visto ao lado de um Raul já bastante debilitado à época, indo cantar até no Domingão do Faustão, Marcelo foi acusado por parte dos fãs de ser uma espécie de aproveitador.

“Foi um enorme erro duvidar de Marcelo Nova. Ele colocou o Raul de volta ao palco, o protegeu. O tirou do nada e lhe deu um disco de ouro. Por isso, Raul o chamava de Marceleza”, disse Kika Seixas.

Um material inédito são as cartas que a mãe de Raul, Maria Eugênia, enviou para Kika. Elas estavam guardadas com a autora e trazem um conteúdo comovente. Kika fala das composições feitas em parceria com Raul, dos traumas de infância do parceiro, de sua busca por uma pensão para a filha Vivi depois da separação do casal e da tensão da partilha após a morte do artista. Um livro que expõe uma valiosa peça no grande quebra-cabeça de muitas publicações que se tornam histórias tão profundas como as de Raul Seixas.

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