Exemplo de como essas pluralidades matriciais se fundem e manifestam, é o Auto do Boi, tido por Câmara Cascudo [1] como o primeiro auto nacional. De fato, essa manifestação popular, com diversas sinonímias, [2] estará presente desde cedo no nordeste e meio norte brasileiro. Embora a primeira menção a este folguedo apenas seja registrada em 1840, [3] sabe-se que a manifestação já se enraizara na cultura popular brasileira, a ponto de transitar para a África Ocidental – levado pelos escravos libertos, expulsos para o continente africano após a revolta do Malês [4] em 1835 -, sob a denominação de Burrinha. [5]
Como forma de ilustrar mais uma vez o processo de “Circularidade Atlântica”, ao qual já aludimos anteriormente neste texto, vale aqui citar que diversos pesquisadores atribuem diferentes origens imediatas ao Boi, quanto a sua chegada ao Brasil. Câmara Cascudo e Maria Isaura Pereira de Queiróz, atribuem a origem do Boi no Brasil à colonização portuguesa. Outros, como Ramos (op.cit) e Barreto [6] atribuem ao auto do boi brasileiro uma origem tão única e exclusivamente africana. Ypiranga Monteiro considera que o auto do boi no Amazonas possui origem direta de Portugal, sem sequer transitar pela costa brasileira num primeiro momento.[7]
Sabemos de fato que o arquétipo de Morte e Renascimento presente no Boi, tem origens no Mitraismo, [8] tendo surgido no Crescente Fértil com a Revolução Agrária. Efetivamente, o arquétipo é universal. Ypiranga Monterio cita um mito indígena amazônico, estruturalmente análogo. Diz ele:
“ A diferença que existe entre o ritual do sacrifício da cobra Sucuriju (rio
Negro, Amazonas) e o holocausto do Touro ou boi (Ásia, África) é apenas de
de espécie animal. O motivo é o mesmo, mesmas são as práticas cerimoniais,
iguais as experiências e finalidades.” (MONTEIRO, op. cit)
Quando falamos de construção de um sentido de identidade, ao abordar o Auto do Boi, referimo-nos de fato a três diásporas que conviviam simultaneamente no Brasil. Era como se cada um dos grupos se olhasse num espelho que apenas lhes oferecia uma imagem distorcida de si mesmo. Os ameríndios, que se viam despojados de seus valores tradicionais, de sua cultura, línguas, sistemas religiosos e estruturas de organização social. Os europeus, em sua vasta maioria portugueses dos estratos sociais mais baixo da sociedade lusa, que muitas das vezes eram obrigados a migrar para o Brasil sem que sequer lhes fosse permitida a volta para a metrópole. São inúmeros os casos de lançados – jogados à própria sorte nas costas brasileiras -, e dos punidos com desterro pelos mais diversos crimes julgados pela justiça portuguesa. Além disso, a miséria secular de grande parte da população portuguesa e os aventureiros que migravam para o Brasil na esperança de ficar rico. E, por fim, o contingente mais numeroso de imigrantes, os africanos. Embarcados na costa ocidental da África em sua maioria, eram provenientes de diversas regiões por vezes longe do mar. Eram, amiúde, presas de guerras internas travadas no interior do continente africano, ou vítimas de raids efetuados com a finalidade de capturar peças (como eram designados os escravos reduzidos a mercadoria) pelas quais os europeus pagavam um bom preço nos portos de embarque da costa africana, para alimentar a produção nos engenhos de açúcar, plantações e mineração nas Américas. Religião, música, festejos – que remetiam à construção de uma memória ancestral de uma África – , contribuíram profundamente para construir um sentido de identidade na diáspora brasileira.[9]
Curiosamente, essa indeterminação do sujeito verificada nos grupos acima descritos, os quais, majoritariamente, moldaram o mosaico étnico brasileiro, seria um traço da pós-modernidade, o que leva alguns autores a aventar a hipótese de que essa particularidade seja algo inerente às culturas americanas. Para Stuart Hall, o sujeito da pós-modernidade está relacionado com um processo de identificação, “por meio do qual nos projetamos em nossas identidades culturais”, tornando-se mais “provisório, variável, móvel” Assim, “a identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Dessa forma, a fluidez intrínseca às relações sócio-culturais da pós-modernidade implica em que a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente, seja uma fantasia pela qual, continuamente, buscamos. [10]
Ainda a propósito dessa questão, argumenta Canclini que as sementes do que se chama hoje pós-modernidade, seria parte integrante do processo histórico das Américas.[11]
[1] CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro.
Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura; Instituto Nacional do Livro, 1954.
[2] Bumba-meu-boi (Alagoas e Pernambuco), boi, boi calemba, bumba (Pernambuco), boi-bumbá (Belém-Pará) boi–surubi (Ceará), boi de mamão (Santa Catarina), boi de Reis, boi-dá, boizinho (Rio Grande do Sul) ver DUARTE, Abelardo. Um folguedo do Povo: O Bumba-Meu-Boi (Ensaio de História e Folclore) Maceió: Edições Caeté. 1957.
[3] Em documento impresso no Recife, encontramos menção explícita ao bumba-meu-boi em artigo publicado num órgão de imprensa local chamado de O Carapuceiro, de autoria do Padre Lopes da Gama, que considerava o Bumba-Meu-Boi “um agregado de disparates”. Ver CARNEIRO, Edson. Negros bantus. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1927.
[4] REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil. A história do levante dos malês em 1835.São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
[5] “ (…) os brasileiros do Togo e Daomé construíram sobrados neoclássicos, e até hoje comem cocadas, moquecas de peixe com pirão de farinha de mandioca, cozido, feijão-de-leite, feitos à maneira do Brasil. Em Porto Novo dança-se o ‘burrinhão’ – a burrinha ou o bumba-meu-boi brasileiros – com versos em português conservados pela tradição oral. E ali se celebra a festa do Senhor do Bonfim, no mesmo dia que em Salvador.” COSTA E SILVA, 2003
[6] BARRETO, Mascarenhas. Corrida. Breve História da Tauromaquia em Portugal. Lisboa: Edição do Autor, 1970. Composto e impresso na Casa Portuguesa. Distribuído pela Agência Portuguesa de Revistas. N° de catálogo Biblioteca Nacional de Portugal: BA 4159.
[7] MONTEIRO, Mário Ypiranga. Boi-Bumbá – História, análise fundamental e juízo crítico. Manaus: Edição do autor, 2004.
[8] Ver CARVALHO, Rui. Aspectos Míticos presentes na genealogia do auto do Boi-Bumbá: Um contexto amazônico. in Interfaces Contemporâneas entre Religião e Educação na Amazônia. da SILVA, Rosângela Siqueira (org.) e da SILVEIRA, Diego Omar (org.). Rio de Janeiro: Autografia, 2018.
[9] Poderíamos citar como exemplos os Maracatus do Recife, o Candomblé do Maranhão, a Capoeira de Angola e a Capoeira Regional, ambas da Bahia, e as diversas formas de batuques cujo expoente máximo se materializou nas escolas de samba do Rio de Janeiro, para nos cingirmos apenas a alguns.
[10] HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
[11] “ (…) por sermos a pátria do pastiche e do bricolage, onde se encontram muitas épocas e estéticas, teríamos o orgulho de ser pós-modernos há séculos e de um modo singular.”CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. 4ª Ed. 4ª reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
Rui Carvalho é regente titular da Amazonas Band, arranjador e compositor, doutor em Etnomusicologia pela Unicamp e diretor-geral do Festival Amazonas Jazz.