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Avanço do mar deixa açaí salgado e ribeirinhos sem água na foz do Amazonas

Crise climática ameaça projeto pioneiro de extrativismo no Amapá
O conjunto de oito ilhas do Amapá sofre com a erosão de terras e a salinização da água doce; moradores temem ficar sem condições de sobrevivência no local - Rudja Santos/Amazônia Real

Localizado na foz do Amazonas, o arquipélago do Bailique (Amapá) tem nos imponentes açaizais nativos a sua principal fonte de renda. Mas a elevação do nível do oceano Atlântico sobre o rio mais volumoso do mundo está salgando o fruto roxo e ameaça a própria permanência dos cerca de 14 mil moradores.

A investida do mar sobre o rio sempre ocorreu na região, onde ganhou o nome local de maré lançante ou lanço. O problema é que vem ocorrendo com força crescente e por mais tempo. Neste ano, pela primeira vez, todas as 58 comunidades, espalhadas por oito ilhas, foram atingidas, levando a prefeitura de Macapá a decretar situação de emergência.

“Sempre houve isso, mas não adentrava no arquipélago, ficava só nas comunidades da costa. No ano passado, pegou um terço do Bailique. Neste ano, pegou o arquipélago todo”, afirma o presidente da cooperativa de produtores de açaí Amazonbai, Amiraldo de Lima Picanço, 35.

Segundo moradores, o Amazonas começou a ficar salgado a partir de agosto. Em 14 de outubro, o prefeito de Macapá, Dr. Furlan (Cidadania), decretou situação de emergência no distrito para agilizar a distribuição de água e de cestas básicas, levadas de barco da cidade, a cerca de 180 km, uma viagem de 12h.

O impacto também avança sobre os açaizais. Segundo Picanço, que é engenheiro florestal, frutos colhidos mais próximos da costa salgaram há mais de dez anos, e o fenômeno está se intensificando. Um dos 132 produtores da Amazonbai já registrou o problema em parte do seu açaí.

“A água do mar está invadindo, e o açaí vai sofrer alterações. A gente sabe que o açaí consome muita água. Tem lugares, para a banda do norte onde o açaí é totalmente salgado”, afirma o produtor cooperado Pedro Barbosa, 42.

A ameaça ocorre em um momento em que a Amazonbai atravessa uma fase de consolidação e expansão. Após anos de exploração predatória do palmito do açaí, os produtores se organizaram e passaram para a extração do fruto por meio do manejo de mínimo impacto. A floresta continua de pé, e a intervenção principal é a limpeza da área, por meio de poda.

A cooperativa foi a primeira organização do país a ter a certificação FSC (Conselho de Manejo Florestal, na sigla em inglês) de serviços ecossistêmicos para conservação dos estoques de carbono florestal e da diversidade de espécies.

Ao todo, são 2.972 hectares de açaizais certificados pela entidade internacional, incluindo o selo de cadeia de custódia.

Em outra conquista dos cooperados, a Amazonbai abriu, em 10 de dezembro, uma agroindústria em Macapá para beneficiar parte da produção e que também serve de entreposto, tirando o poder de barganha dos atravessadores.

Açaí produzido no arquipélago do Bailique, no Amapá – Adriano Vizoni/Folhapress

A despeito das boas práticas e do bom momento econômico do açaí, os moradores sofrem com a estrutura precária. As casas dependem de energia de geradores movidos a gasolina, com seu preço cada vez mais proibitivo. Não há sistema de esgoto adequado. O hospital mais próximo fica em Macapá.

Com relação à crise hídrica, os ribeirinhos reclamam que, em todos estes meses, cada família recebeu apenas uma única remessa de 15 pacotes de água mineral, que somam 135 litros. Eles também afirmam que a água trazida em tanques de barcos e distribuída pelo governo estadual, liderado por Waldez Góes (PDT) é ferrosa e de má qualidade.

O banho costuma ser com a água salobra, o que deixa o corpo pegajoso e com cheiro semelhante ao de peixe marinho. Para mitigar a escassez, muitos captam a água da chuva ou vão de canoa até igarapés não contaminados.

Médico do posto de saúde local, o cubano Pedro Sarduy diz que o consumo de água imprópria tem provocado vômito, diarreia e problemas de pele. Ele conta que muitos moradores não têm dinheiro para comprar galões de água, que contêm 20 litros e custam cerca de R$ 25.

“Eu recomendo que fervam a água, mas as pessoas não fazem porque o gás está caro”, afirma.

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), cada pessoa precisa usar de 50 a 100 litros de água por dia.

O subsecretário de gestão e planejamento da Mobilização e Participação Popular, Emanuel Bentes, disse que o cálculo da água mineral era apenas para a hidratação. Sobre a água enviada pelo governo estadual, ele reconheceu que tem gosto ferroso, mas assegurou que é própria para o consumo humano.

Bentes afirma que a construção e manutenção de dutos na região é dificultada pelo fenômeno conhecido como terras caídas, bastante comum nos grandes rios amazônicos, em que barrancos desmoronam por influência da correnteza.

Para piorar, um estudo técnico encomendado pela prefeitura concluiu que a dessalinização é inviável em Bailique, devido à alta turbidez do barrento rio Amazonas. Segundo Bentes, a solução será aprimorar a captação da água da chuva nas comunidades.

Futuro sombrio

O oceanólogo Wilson Cabral, do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) avalia que a foz do Amazonas é uma das regiões mais vulneráveis às mudanças climáticas do país, por estar na área de influência tanto do oceano quanto no continente. Além disso, são terras baixas.

“O alcance da intrusão salina na foz do rio Amazonas vai aumentando à medida que eleva o nível do mar. Isso vai gerando efeitos ao longo de quilômetros e quilômetros adentro”, afirma Cabral, que participa de um estudo sobre o impacto das mudanças climáticas na vizinha ilha do Marajó.

Esses efeitos não se restringem à superfície e incluem a penetração da água salina no lençol freático.

“Isso vai impactar todos os processos que dependem disso, desde a captação de água, via cacimbas e poços, até culturas, como a do açaí”, afirma.

Segundo o oceanólogo, outro impacto negativo na região são as hidrelétricas nos rios amazônicos, que barram a chegada de sedimentos. “Essa descarga sólida é responsável por ir formando terras na foz. Se há uma redução desse aporte de sedimentos, aumenta a erosão costeira.”

“Estamos buscando soluções para não ir embora do nosso território”, afirma Picanço.

Para a liderança, a certificação por serviços ecossistêmicos demonstra que os cooperados estão alinhados com as diretrizes previstas pela COP26, a conferência de clima da ONU. “Podemos ser modelo para outras regiões. Vamos ajudar o Rio de Janeiro, Miami. Estamos fazendo o nosso papel.”

*As informações são da Folha de São Paulo. Os repórteres Fabiano Maisonnave e Adriano Vizoni viajaram a Bailique a convite do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola).

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