Dia 2 de junho é o dia mundial da conscientização dos transtornos alimentares. Lendo sobre o assunto, encontrei uma pesquisa realizada pela Universidade de Medicina de Yale em 2018 sobre Fat Talk. O termo é utilizado para definir as frases pejorativas em relação aos nossos próprios corpos e o dos outros quando falamos sobre peso de forma negativa.
Segundo a pesquisa, 76% dos pais falavam mal dos próprios corpos na frente das crianças, 51% conversavam sobre obesidade, gordura e corpos em geral e 43% apontavam questões nos corpos de seus filhos, como o ganho de peso ou a flacidez dos braços. O curioso é que, olhando para os resultados, vemos que não houve grande diferença no aumento do papo entre pais de pré-adolescentes e adolescentes, mas ele foi maior entre pais e filhos do que filhas. Dá para enxergar algum machismo estrutural aí onde homens, de diferentes gerações, acham mais natural conversar com homens sobre os corpos de outras pessoas?
A conclusão do estudo foi que os pais usam diferentes formas para falar com frequência sobre gordura. Sabe aquele papo tido como natural como “Nossa, se eu comer mais agora vou ficar enorme?”, ou na praia ou na piscina “Olha o tamanho da minha barriga?”. Então, é isso e mais um pouco: A conversa sobre o próprio corpo foi relatada com mais frequência, mas a conversa sobre o corpo das crianças foi a mais fortemente ligada com a modificação do comportamento com relação à alimentação e ao peso das crianças. Ou seja, quando a gente acha que fala de forma inocente e natural para uma criança que ela está “comendo demais, vai ficar com barriga” ou “tá com os braços roliços”, “vai ter que fazer ginástica”, ou qualquer outro comentário que tenha a ver com magreza, peso e comida, nós interferimos diretamente na forma com que elas lidam com a própria imagem. Mudar os hábitos relacionados às conversas e ao papo direto sobre o corpo das crianças pode modificar para sempre as possibilidades de distúrbios alimentares pediátricos e intervenções relacionadas ao peso delas agora e no futuro.
Todo esse papo importante me lembrou um filme de 2017 chamado To The Bone, (O mínimo para viver) que está disponível na Netflix. Estrelado por Lily Collins, narra a história de uma jovem de 20 anos que sofre de anorexia nervosa e que já passou por diversas internações. No início da história, a família investe mais uma vez em um novo tratamento de internação, dessa vez com um médico fora do padrão, interpretado por Keanu Reeves, que trata os pacientes com mais proximidade e menos limites.
O bacana dessa história (sinalizando todos os importantes gatilhos, obviamente) é que, mesmo tratando de assuntos muito difíceis, ela não romantiza os transtornos alimentares, não justifica como possível êxito no esporte ou em qualquer outra área profissional e nem ensina táticas para manter o problema. Pelo contrário: não dá detalhes de pesos e truques e sim mostra honesta e diretamente os aspectos negativos da história como: Lanugo (uma penugem que reveste o corpo das pessoas anoréxicas devido à extrema privação, para controlar a temperatura), a coluna exposta e machucada, a ausência de menstruação, a obsessão por calorias, a dificuldade cognitiva e principalmente os conflitos familiares. Ellen, no filme, tem pais muito relapsos (sim, estou julgando, mas o filme tem 1h20 e um deles só aparece na metade para o fim), mas mais importante do que isso, ela tem uma meia-irmã que sofre muito por ela e que ao mesmo tempo não entende o que se passa. Várias vezes ela repete: “Não entendo o problema, é só ela comer”.
São vários e muitos diferentes os transtornos alimentares e os impactos na mente e nos corpos: anorexia, bulimia, compulsão, ortorexia (preocupação exagerada com o que se come), vigorexia (obsessão para ter o corpo perfeito), dentre outros. Todos exigem cuidado e forte acompanhamento profissional. Falar sobre isso, ler sobre isso, assistir sobre isso não só é importante na teoria: é também falar e agir hoje sobre o que pode acontecer com a gente e ao nosso redor.
Eu fui uma criança gorda. Uma pré-adolescente gorda também. Eu sentia vergonha de ir para a praia, para a piscina ou qualquer evento que envolvesse mostrar o meu corpo. Eu não sei explicar o meu nível de constrangimento. Eu só tinha certeza que aquilo não era para mim. Perdi festas na piscina, viagens com amigos e encontros na praia. Simplesmente porque eu achava que – literalmente – não cabia. Fui ofendida por meninos de diferentes idades também. A mais marcante foi na praia em Búzios, eu devia ter uns 12 anos, quando um deles segurou a minha barriga e falou que eu era gorda olhando para a minha cara. Eu nunca esqueci. Ele tinha a minha idade. E, assim como mostra a pesquisa de Yale, fica claro que ele não aprendeu esse discurso sozinho.
De um lado a gente tem a pesquisa real de como o papo sobre gordura afeta as crianças e do outro um filme, ficcional, sobre os efeitos nos corpos e nas mentes dos jovens impostos pela sociedade. Logo que a madrasta deixa a Ellen na reabilitação, ela diz: “Fique boa. Apenas boa. Não perfeita.” Fiquei pensando no que isso quer dizer. Ela estava falando sobre “só” não deixar de ser doente e atrapalhar o fluxo desta família ou algo mais? Muitas vezes me pego falando sobre corpos com amigas, não sobre as crianças, mas na frente delas. Tão importante entender e saber que elas reproduzem nossas falas, pensamentos, atitudes. Já é muito difícil não julgar o corpo delas, mas por que a gente continua julgando os nossos? Por que falamos sobre a nossa barriga, nossos braços ou como gostaríamos de ser de acordo com um modelo pré-aprovado? Como esperar das crianças que elas não julguem os próprios corpos se as pessoas que elas mais amam não param de falar sobre isso?
Acabar com o Fat Talk é aprender a lidar mais com o presente do que com o futuro. Pensar no que a gente é agora em vez de planejar o que poderia ser. Brincar com o hoje, valorizar o corpo de agora e o que ele nos entrega e, principalmente, saber o que ele nos traz e realiza, muito mais do que o que nos falta. É sobre saber olhar para trás e perdoar não só os outros e as dores geradas, mas principalmente a gente mesmo. Ser referência – ainda que doída – para criança de hoje e de amanhã e mais: para aquela na praia de blusa que a gente foi um dia.
*Heloiza Daou é movida a palavra e um pouco obsessiva. É diretora de marketing na Intrínseca e também mãe do Tomás, o job mais insano e amado da vida.