Cientistas estão correndo contra o tempo para investigar se uma nova variante de coronavírus identificada no Reino Unido se espalha com mais facilidade entre as crianças.
Caso essa hipótese seja confirmada, ela poderia explicar “grande parte” do aumento da transmissão associada a essa mutação do vírus. Isso porque, segundo o governo britânico, essa variante pode ser de 50% a 70% mais transmissível que outras versões do vírus.
Até agora, não há nenhuma evidência que comprove essa possibilidade nem de que a doença tenha ficado mais grave. Há indícios de que ela se espalhe mais entre crianças, mas não há nada que aponte que essa nova forma do vírus tenha se tornado uma grande ameaça para a saúde das crianças.
Na segunda-feira (21/12), o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, afirmou que as escolas do país, atualmente em recesso, serão reabertas em janeiro “se for possível”.
O Reino Unido adotou um rigoroso confinamento (lockdown) em Londres e outras regiões do país para tentar conter o espalhamento da doença. E até o momento, mais de 40 países já fecharam suas fronteiras para viajantes britânicos por receio da disseminação da nova variante.
A hipótese sobre um impacto maior nas crianças foi aventada por integrantes do grupo de conselheiros científicos sobre vírus respiratórios novos e emergentes (Nervtag, na sigla em inglês).
Ao longo da pandemia, as crianças quase sempre “ignoraram” o vírus, mas a nova variante (batizada de B.1.1.7) pode alterar o papel que elas e as escolas desempenham na disseminação do vírus.
Os cientistas descobriram que variantes anteriores do novo coronavírus (Sars-CoV-2) eram mais difícil infectar as crianças do que adultos. Uma explicação possível é que crianças têm menos “portas de entrada” (receptores ACE2) que o vírus usa para entrar nas células do nosso corpo.
Wendy Barclay, membro do Nervtag e professora do Imperial College de Londres, afirmou que as mutações do vírus ligadas à variante B.1.1.7 parecem ter tornado mais fácil o caminho pelas “portas de entrada” que já existiam.
Segundo ela, isso, caso seja confirmado, colocaria as crianças no mesmo patamar dos adultos na pandemia, já que o vírus teria “menos inibições” para infectar os mais novos.
“Assim, se as crianças são realmente suscetíveis a este vírus da mesma maneira que os adultos e dados os seus padrões de contato social (principalmente em escolas), seria esperado ver mais crianças sendo infectadas.” Ela afirmou que não há qualquer indício de que o vírus esteja visando preferencialmente as crianças.
Análises preliminares dos dados de como e onde essa variante B.1.1.7 está se espalhando também acrescentaram “indícios de que ela tem uma maior propensão a infectar crianças”, de acordo com Neil Ferguson, professor do Centro MRC para Análise Global de Doenças Infecciosas do Imperial College de Londres, que também trabalha no Nervtag.
Ele ressaltou que essa associação ainda está sendo estudada e ainda não foi comprovada a relação de causalidade. Ou seja, que a nova variante de fato atinge mais as crianças e que isso não é uma “coincidência”, por exemplo.
“Se essa hipótese for verdadeira, poderia explicar uma proporção significativa, talvez até a maioria, do aumento de transmissão visto até agora”, acrescentou.
A nova variante, surgida após mutações, se tornou a forma mais comum do vírus em algumas partes da Inglaterra em questão de meses. O governo britânico diz que há motivos para acreditar que ela seja bem mais contaminante, possivelmente 70% mais transmissível.
Há outras hipóteses em debate para tentar explicar o fenômeno.
Para a epidemiologista Zoë Hyde, da Universidade da Austrália Ocidental, “uma teoria alternativa é que o vírus agora é simplesmente mais prevalente entre as crianças, que têm frequentado escolas com medidas preventivas insuficientes. E é claro que ele explodiria sob essas condições”.
Afinal, as escolas ficaram abertas no Reino Unido mesmo durante o lockdown. Hyde, no entanto, também defende medidas preventivas contra a nova variante, já que é sempre “melhor pecar pelo excesso de cuidados”.
Mas especialistas ainda correm para responder diversas dúvidas que surgiram com essa variante. Uma delas é se o vírus se tornou de fato mais contagioso ou se foi o comportamento das pessoas, sem distanciamento social adequado, que catapultou a prevalência dessa variante.
“A quantidade de evidências em domínio público é inadequada para chegar a conclusões sólidas sobre se o vírus realmente aumentou sua transmissibilidade”, diz o virologista Jonathan Ball, professor da Universidade de Nottingham.
Um estudo liderado por Ravi Gupta, professor da Universidade de Cambridge, sugeriu em laboratório que essa mutação aumenta em duas vezes a capacidade do vírus de infectar células. “Estamos preocupados, a maioria dos cientistas está preocupada.”
Enquanto as dúvidas persistem, as medidas restritivas se avolumam.
“Experimentos de laboratório são necessários (para confirmar ou refutar hipóteses), mas é desejável esperar semanas ou meses para ver os resultados e tomar medidas para limitar a propagação? Provavelmente não nessas circunstâncias”, diz Nick Loman, professor do Instituto de Microbiologia e Infecção da Universidade de Birmingham, no Reino Unido, que defende as restrições para tentar conter essa versão do vírus.
‘Retomar o controle’
Os dados continuam a ser analisados, mas acredita-se que a variante continuou se espalhando mesmo durante o lockdown em novembro.
A taxa “R” — o número médio de pessoas para as quais cada pessoa infectada passa o vírus — para essa variante durante as duras restrições de confinamento foi estimado em 1,2. Quando esse número está acima de 1, significa que o número de casos está aumentando; abaixo de 1, que as infecções estão em declínio.
Por outro lado, o “R” calculado de outras formas do vírus no mesmo período era de 0,8.
Ferguson, do Imperial College de Londres, disse esperar que o número de infecções caia à medida que as escolas permanecem fechadas no recesso e as pessoas se recolhem para as festas de fim de ano. Várias regiões do Reino Unido proibiram que pessoas de casas diferentes se encontrem, inclusive no Natal.
“A verdadeira questão então é: até que ponto somos capazes de flexibilizar essas medidas de restrição no próximo ano e ainda manter o controle?”, afirmou Ferguson.
Boris Johnson ressaltou que, “queremos, se for possível, ter as escolas de volta de forma escalonada no início de janeiro, da maneira que estabelecemos. (…) Mas, obviamente, a coisa mais sensata a fazer é seguir o caminho da epidemia e, como mostramos no sábado passado, manter as coisas sob constante escrutínio.”
As vacinas funcionarão contra a nova variante?
Acredita-se que sim, pelo menos por enquanto.
Mutações na proteína spike levantam dúvidas já que três das principais vacinas — Pfizer/BioNTech, Moderna e Oxford/AstraZeneca — treinam o sistema imunológico para atacar a proteína spike.
No entanto, o corpo aprende a atacar várias partes dessa proteína. É por isso que as autoridades de saúde continuam convencidas de que a vacina funcionará contra essa nova variante.
“Mas se deixarmos essa variante se espalhar e sofrer mais mutações, isso pode se tornar preocupante”, diz Gupta. “Este vírus está potencialmente em vias de se tornar resistente à vacina, ele deu os primeiros passos nesse sentido.”
O vírus consegue se tornar resistente à vacina quando, ao mudar de formato, se esquiva dos efeitos da imunização e continua a infectar as pessoas.
O coronavírus evoluiu em animais e passou a infectar os humanos há cerca de um ano. Desde então, tem passado por quase duas mutações por mês — entre uma amostra colhida hoje e as primeiras da cidade chinesa de Wuhan há cerca de 25 mutações.
Ao longo de sua trajetória, o coronavírus ainda está “testando” diferentes combinações de mutações para infectar humanos de maneira adequada. Já vimos isso acontecer antes: o surgimento e o domínio global de outra mutação (G614) é visto por muitos como o momento em que o vírus aprimorou sua capacidade de se espalhar.
Mas logo a vacinação em massa colocará um tipo diferente de pressão sobre o vírus, porque ele terá que mudar para infectar as pessoas que foram imunizadas. Se isso impulsionar a evolução do vírus, talvez tenhamos de atualizar regularmente as vacinas, como fazemos anualmente com a gripe sazonal, para manter o ritmo.
Segundo Anderson Brito, virologista do departamento de epidemiologia da Escola de Saúde Pública da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, “não é qualquer mutação, única, isolada, que inutilizará uma vacina. Não é simples assim. Só mutações específicas, em regiões especiais de proteínas virais, podem mudar o comportamento viral. Elas são muito muito raras”.
Além disso, existe uma nova “arma” contra isso. As novas vacinas que usam RNA mensageiro, como a da Pfizer/BioNTech e da Moderna, são mais fáceis de serem adaptadas contra eventuais mutações que tentem driblar os imunizantes que temos hoje.
* BBC