A pandemia de Covid-19 escancarou algo que os pesquisadores e a indústria nacional já sabem há anos. O Brasil é completamente dependente de outros países para produzir medicamentos e vacinas.
Se há algum consolo, não somos os únicos. Grande parte das nações precisa, em algum grau, de insumos e dos Ingredientes Farmacêuticos Ativos (IFAs) produzidos na China e na Índia. Durante a pandemia, esses países, detentores da tecnologia de produção, decidiram quem receberia (e com que velocidade) a vacina contra a Covid-19, segundo o Metrópoles.
A história de como chegamos a este ponto começa nos anos 1980. O Brasil produzia cerca de 50% dos IFAs consumidos no país (hoje, só fabrica 5%), e era autossuficiente na fabricação de antibióticos, por exemplo, suprindo o mercado nacional e exportando. A empresa Intex gerava boa parte das vacinas para abastecer o Programa Nacional de Imunização (PNI).
Porém, com a necessidade de um controle de qualidade mais rígido e de novas normas, a empresa decidiu fechar as portas. Para suprir essa falta, os laboratórios públicos foram favorecidos — com investimentos no Instituto Butantan e na Fundação Oswaldo Cruz, principalmente, o que acabou prejudicando a iniciativa privada. Além do custo alto de produção, as condições se tornaram desiguais, pois o governo compra preferencialmente de instituições públicas.
“No governo Collor, quando se abriu o mercado, a indústria local perdeu a competitividade de forma muito rápida. Não tivemos planejamento: abrimos, reduzimos tarifa de importação, nossas empresas tinham problemas trabalhistas, precisavam seguir a legislação ambiental e as regras da Anvisa”, explica Norberto Prestes, diretor da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos.
Ainda segundo o especialista, “a China e a Índia criaram ambientes com pouca regulamentação e muito recurso, e houve um movimento mundial das indústrias, que se mudaram para lá”.
Nesse movimento, ficou muito mais barato importar tudo do que produzir em território nacional. As fábricas que o Brasil tinha se tornaram meros centros de envaze, sem capacidade tecnológica de produzir fórmulas.
“Vivemos o custo da ineficiência estatal. Em um primeiro momento pandêmico, importamos. O ideal seria que, dado o contexto e sabendo o quão danoso é não ter laboratórios qualificados, pensássemos em como o país gostaria de se reestruturar para ter a capacidade tecnológica necessária para responder a demandas agudas e cenários de escassez futuros”, frisa Paulo Almeida, diretor do Instituto Questão de Ciência.
Os Estados Unidos, por exemplo, também dependiam de cerca de 70% dos IFAs importados da China. Mas nunca houve congelamento de incentivo, e o país tem laboratórios de primeira linha que são capazes de responder a problemas urgentes como a pandemia.
O problema do financiamento
Os especialistas concordam que, no Brasil, o problema definitivamente não é falta de dinheiro. É de planejamento. O sistema de distribuição de verba para ciência e tecnologia sempre foi pontual: não há previsão de financiamento para projetos de 10 anos, por exemplo, tempo que demora para uma pesquisa sair do campo das ideias e se transformar em inovação disponível no mercado.
“No caso da zika, por exemplo, houve muita liberação de dinheiro, mas todas as pesquisas que chegaram a um ponto de resultado, de começar a testar as vacinas, tiveram o fundo cortado. Com dois, três anos de dinheiro, a pesquisa é publicada, mas não atinge o estágio de virar algo palpável”, assinala Anamélia Lorenzetti Bocca, coordenadora do laboratório de Imunologia Celular do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília (UnB).
Outro problema é que o investimento é pulverizado entre muitas linhas de estudo, sem foco, o que acaba resultando em pouca verba para muitos pesquisadores. A área de ciência e tecnologia precisa de investimentos robustos para tirar ideias do papel, mas da forma como o sistema está montado não há a definição de linhas prioritárias.
Como resolver?
Para garantir que o país seja autossuficiente no futuro, é preciso repensar o papel das universidades públicas, que são as maiores geradoras desse tipo de pesquisa. “O Brasil tem 69 universidades federais, todas com pretensão de ser de pesquisa, e o país não tem dinheiro para bancar. Se tivéssemos três ou quatro universidades top de linha, como é o caso da China, com investimento pesadíssimo, teríamos mais condições”, explica Paulo Almeida. Ele acredita que a academia precisa de um diretor, uma figura que seja capaz de fazer lobby junto ao governo para pressionar as demandas das universidades.
Além disso, é primordial que o financiamento de ciência e tecnologia seja uma política de estado, sem depender da decisão de cada governo. A sugestão de Norberto Prestes é seguir o exemplo da Índia, definindo aquilo que é essencial para o país, a fim de concentrar os investimentos.
“Devíamos ter um planejamento com financiamento contínuo, porque aí se reforça não só a infraestrutura, mas a equipe. Temos pesquisadores e massa crítica para o desenvolvimento de medicamentos e vacinas. Essa é uma falha que não é só deste governo, são anos de um problema de desenvolvimento biotecnológico”, destaca Anamélia Lorenzetti Bocca.
Apesar de o caminho parecer claro, mesmo com a pandemia e a mudança da visão da sociedade quanto à importância da autonomia em medicamentos e vacinas, a reestruturação teria de ser pesada, e não há nada que aponte para essa direção.
“Vamos continuar patinando sem conseguir sair do lugar. A Covid-19 escancarou falhas estruturais muito profundas e vai exigir tempo de planejamento. Mas não há anúncio do governo ou pressão feita pela sociedade. O povo não tem ligação emocional com a pesquisa e, por isso, é uma área que pode ser cortada sem muito impacto político”, analisa Almeida.
Norberto Prestes lembra que, a longo prazo, levando em consideração o tamanho da população brasileira, importar tudo é um “tiro no pé”. “Temos capacidade para reagir. Há muita gente competente neste país, é questão de estruturar e fazer acontecer. Torço para isso”, conclui.