“ – Eu queria dormir hoje sozinha.
– Não brinca… Deu trabalho para arrumar uma desculpa lá em casa.
– Deu trabalho? Eu demorei 30 anos, dois meses e 19 dias para ter um lugar só meu.”
Virgínia Woolf diz em um de seus ensaios mais influentes do século XX que o que uma mulher precisa é ter um quarto só seu. No livro, publicado em 1929, a autora faz uma contundente análise das condições sociais das mulheres e, principalmente, das limitações impostas ao seu trabalho. É impressionante perceber, lendo um texto com mais de noventa anos, o quanto os questionamentos, as ponderações e os apontamentos da autora são reconhecidos e vistos até hoje. E também o quanto o exercício diário da sociedade em colocar a mulher neste lugar inferior, menosprezando seus sentimentos, seu trabalho e suas vontades é na realidade mola propulsora e rotineira para que os homens se sintam sempre mais poderosos e realizados.
“As mulheres nunca tem meia hora […] apenas para si mesmas”, diz Florence Nightingale (1820–1910) no ensaio Cassandra, em que a autora ataca a estrutura familiar vitoriana. Cassandra também é o nome da protagonista da série brasileira Manhãs de setembro, interpretada brilhantemente por Liniker e que estreou no Prime Video em junho de 2021. É dela também, junto com Ivaldo (Thomas Aquino) a fala que abre esse texto.
Na história — contada em cinco capítulos de meia hora – acompanhamos uma mulher trans que trabalha como motogirl em São Paulo fazendo entregas por aplicativo. À noite ela canta, principalmente as músicas de Vanusa, cantora brasileira famosa na década de 1970, sua maior inspiração. Após muitos anos de sofrimento, exaustão e trabalho, Cassandra encontra o amor na figura de Ivaldo, seu namorado, e finalmente consegue alugar um espaço pequeno, em um sobrado, que é só seu. Tudo parece caminhar bem até que Leide, uma ex-namorada, aparece (a ótima Karine Teles) com um menino de 10 anos, Gersinho (Gustavo Coelho), que ela diz ser filho de Cassandra e que quer conhecer o pai. A partir daí, observarmos o quarto que era só dela ser ocupado por muitas pessoas e a vida da protagonista ser interrompida a todo momento, assim como as escritoras analisadas por Virginia Woolf no seu célebre ensaio de 1929.
Tem algo muito delicado na produção, que envolve os diferentes formatos de família e as histórias do corre de muitas mulheres na capital paulistana: a cantora e compositora Liniker em seu primeiro papel como atriz destacando-se como Cassandra, com todas as nuances e complexidades, a voz da consciência — quase um alter ego — que é a Vanusa; a ex-namorada Leide, que vende produtos na rua com o filho, mora em um carro velho e está exausta de ser mãe solo nos últimos dez anos; as mulheres trans amigas da protagonista que formam um belo e respeitoso grupo sempre em busca de se sentirem amadas (destaque para Linn da Quebrada, como Pedrita); e a mãe de Grazy, melhor amiga de Gersinho, mulher que “faz pista” toda a noite enquanto a filha dorme.
Todas elas vivem de bicos e subempregos e estão constantemente lutando por dias melhores e menos invisibilidade. E embora a série não seja focada na questão da transição de Cassandra e das outras mulheres trans, o que é ótimo, é impossível não enxergar de forma natural que elas têm os mesmos problemas de todas as mulheres, sim, mas acrescidos de uma série de camadas e preconceitos por serem travestis, pretas e pobres. O fosso de desigualdade se abre de forma contundente enquanto assistimos à bela fotografia de São Paulo ao som de uma trilha sonora que mexe conosco, passando por músicas como “Sufoco”, “Paralelas”, “Como vai você” e “Manhãs de setembro”, é claro.
Confesso que comecei a assistir à série sem grandes expectativas e acabei aos prantos em cima do almoço. A cada um dos episódios vamos entendendo um pouco mais do embaralhamento das personagens e julgando cada vez menos suas atitudes e seus posicionamentos. Vai ficando mais fácil enxergar o que a cidade e o tempo fazem e fizeram com essas mulheres e por que é tão difícil encontrar uma solução simples para cada um dos problemas que não param de surgir. Em duas horas e meia de tela há redenção, perdão, diálogos emocionantes, raiva, reflexões e desconstruções profundas.
Manhãs de setembro é sobre a busca incessante do afeto perdido e de como a arte pode nos salvar. A música potente de Cassandra e a busca do sonho de ser artista me lembrou o estudo de Virginia Woolf a partir da série de palestras feitas a jovens universitárias sobre “As mulheres e a ficção”. São 92 anos que separam o texto original de Woolf e a série brasileira dirigida por Luís Pinheiro e Dainara Toffoli, cuja segunda temporada já foi confirmada. O que me admira é perceber que nos dois momentos as mulheres estão fazendo exatamente a mesma coisa: pensando e buscando estratégias para superarem as barreiras de preconceito na sociedade patriarcal que atravessa o século e que aparecem quando elas decidem correr atrás dos próprios sonhos: seja escrever ficção no início do século XX ou cantar na boate Metamorfoses no centro de São Paulo em 2021. Em ambos os casos, ainda que atravessados por muito tempo, as mulheres precisarão das mesmas coisas para não serem interrompidas a todo momento: dinheiro e quartos só seus.
Heloiza Daou é movida à palavra e um pouco obsessiva. É diretora de marketing na Intrínseca e também mãe do Tomás, o job mais insano e amado da vida.