Quem já fez alguma vez turismo na Amazônia e se viu rodeado por golfinhos, atraídos pela oferta abundante de peixes mais do que pela simpatia dos turistas, não poderia imaginar que um dia todas as espécies de botos de água doce do mundo estariam desaparecendo dos rios para estampar a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês).
Na última atualização da publicação, o boto-tucuxi (Sotalia fluviatilis), espécie que compartilha as águas amazônicas com o boto-rosa (Inia geoffrensis), ingressou na lista como espécie em perigo, completando o conjunto de botos ameaçados. Célebre pela cor e pelas lendas amazônicas, o boto-rosa, com temperamento mais dócil para interação e obtenção de amostras para fins científicos, já figurava na lista desde 2018. A reportagem é da Mongabay.
Estudos buscam trazer dados mais consistentes e compreender as particularidades de cada uma das espécies amazônicas. Artigo publicado em 2019 traz estimativas de abundância de botos no rio e lago Tefé, no interior do Amazonas. A publicação confirma a maior densidade de tucuxi em habitats fáceis de navegar, enquanto o boto-rosa, com corpo mais flexível, consegue explorar áreas mais estreitas com profundidade de água limitada sem ficar encalhado.
Apesar das diferenças, as ameaças que recaem sobre as espécies são similares e o declínio populacional de ambas foi apontado em estudo de 2018, realizado num trecho de 30 km de água doce dentro da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Amazonas, apresentando resultados de 22 anos de pesquisa. A conclusão foi de que a população de botos-rosa estava caindo pela metade a cada dez anos, e o mesmo acontecia com os tucuxi a cada nove anos. Ainda que os dados se refiram a um trecho de 30 km, perante os 25 mil km de rios navegáveis da Bacia Amazônica, o estudo considera que Mamirauá é uma área protegida, com menos pressões ambientais. Sendo assim, dentro da reserva o declínio das populações de golfinhos não poderia ser mais significativo do que fora dela.
Encurralados
Entre as ameaças mais comuns aos botos amazônicos estão as usinas hidrelétricas, os conflitos relacionados à pesca, às hidrovias e à contaminação por mercúrio.
Enquanto o Plano Decenal de Expansão de Energia do Brasil prevê a construção de mais três grandes hidrelétricas na Amazônia até 2029 e o Plano Nacional de Energia 2050 inclui ainda outras, as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau — operando no Rio Madeira desde 2012 e 2013, respectivamente — dão uma amostra do que poderá acontecer caso novas hidrelétricas sejam instaladas na Amazônia. A construção das usinas fragmentou o habitat dos botos e deixou uma população de 50 a 100 indivíduos confinados entre as duas grandes barragens, condenados a adoecer e possivelmente desaparecer por conta do empobrecimento genético.
Conflitos relacionados à pesca também pressionam as espécies. O emaranhamento acidental em redes de pesca é recorrente. Atraídos pelos peixes, os botos ficam presos e acabam se afogando. Para prevenir a situação, estudos iniciais estão sendo feitos em Tefé com o uso de pingers, espécie de repelente acústico. “Vamos testar diferentes frequências sonoras aqui e no Peru para afastar os botos das redes, sem os assustar a ponto de fugirem da região”, explica Miriam Marmontel, pesquisadora do Instituto Mamirauá.
Outra ameaça enfrentada pelos botos é o uso de sua gordura como isca para a pesca da piracatinga (Calophysus macropterus), tipo de bagre apreciado como alimento na Amazônia. Com a moratória da pesca do peixe, prorrogada até junho deste ano, os botos ganharam um respiro. Mas, há ainda quem veja nos animais concorrentes em busca de peixes, matando-os intencionalmente por esse motivo. “Eles cortam a nadadeira dorsal do boto e deixam o bicho lá minguando porque ele rasgou a rede”, relata Marcelo Oliveira, especialista em conservação do WWF-Brasil.
Marcelo considera imprescindível buscar soluções para conciliar a convivência entre botos e pescadores e diz que isso não se dará por meio da construção de novas hidrelétricas ou do garimpo do ouro. “O modelo de desenvolvimento da Amazônia está desconectado com o que as espécies da Amazônia precisam”, afirma. Para Marcelo, as hidrelétricas não ameaçam apenas os botos, mas têm impacto na segurança alimentar dos povos da floresta. “Cortar o fluxo dos rios é uma ameaça também para espécies de peixes que vão deixar de chegar nas mesas de quem precisa”.
Tanto os peixes quanto os botos são contaminados pelo mercúrio, usado na mineração para extrair ouro do solo e das rochas. “Documentamos que existem altas concentrações de mercúrio nos botos”, conta Miriam sobre a pesquisa que evidencia o papel dos golfinhos como indicadores da presença do metal pesado nos ambientes aquáticos naturais. Outros avanços nas pesquisas deverão avaliar os efeitos do mercúrio na saúde dos cetáceos. “Precisamos coletar amostras para analisar os componentes celulares e subcelulares para ver se há alterações”, indica.
Sendo topo da cadeia alimentar, o boto é atraído pela presença de diversos peixes, caranguejos, tartarugas e acaba sendo termômetro da saúde e biodiversidade dos ambientes aquáticos. “O boto é a onça das águas”, resume Marcelo.
Espelho de outras águas
Somando o pacote de ameaças, a situação dos botos amazônicos pode acabar refletindo o que já ocorre em outras regiões. “Na Ásia, os golfinhos estão em estado de ameaça maior do que aqui; eles já passaram por muitos dos problemas que estamos enfrentando agora”, diz Mariana Paschoalini Frias, pesquisadora do Instituto Aqualie. “Se a gente se espelha no que já aconteceu lá, temos uma ideia do grande problema que podemos enfrentar em pouco tempo aqui na América do Sul”.
A fragmentação e a degradação causadas pelas barragens na Ásia contribuíram para o declínio das populações do golfinho-do-ganges (Platanista gangetica), na Índia, e do baiji (Lipotes vexillifer), na China — considerado extinto em decorrência da construção da usina de Três Gargantas e de outras barragens ao longo do Rio Yangtzé. Também a subespécie golfinho-do-indo (Platanista gangetica minor), no Paquistão, enfrenta o desafio de ter a sua população fragmentada por 17 barragens.
“Aqui no Brasil, a gente já está começando a ver esse processo com o boto-do-araguaia (Inia araguaiaensis)”, afirma Mariana. “Hoje, ele está preso entre quatro barragens e ainda existem muitos projetos para a região do Tocantins-Araguaia que podem subdividir a população ainda em 12 grupos”. A barragem de Tucuruí foi uma das primeiras a fragmentar a população de botos no Rio Tocantins. Especialistas afirmam que compreender os efeitos exatos da fragmentação para os cetáceos, como as trocas de informações genéticas e a distribuição de presas, exige anos de pesquisa. “Se a gente não tomar nenhuma medida mais efetiva, não só pesquisa, mas também políticas de conservação, a gente pode perder as espécies num futuro próximo”, alerta Mariana.
A escassez de recursos para a ciência é também uma ameaça. “A gente ainda não sabe todas as áreas que têm botos. Os botos podem estar desaparecendo de áreas que a gente nem sabia que era habitat deles”, diz Marcelo. A entrada do boto-tucuxi na lista vermelha é importante para dar visibilidade à espécie e alavancar recursos para a ampliação de pesquisas sobre o cetáceo. “O animal agora está dado como ameaçado e onde é que estão os dados?”, questiona Miriam. “Eu tenho falado com a minha equipe: ‘Vamos investir em trabalhos com o Sotalia porque não tem ninguém fazendo’”.
Plataforma como ferramenta de preservação
Em outubro de 2020 foi lançada a Plataforma Botos Amazônicos, resultado do trabalho de um grupo de especialistas da iniciativa Botos da América do Sul (Sardi, da sigla em inglês), que congrega o esforço científico de cinco países (Brasil, Peru, Colômbia, Bolívia e Equador) para apresentar dados georreferenciados coletados ao longo dos últimos 20 anos sobre as espécies de botos e seu habitat. “Temos agora uma iniciativa que atualiza o mapa de distribuição dos botos para a América do Sul inteira”, explica Marcelo, também coordenador da Sardi. “Trata-se de uma plataforma viva com muitos parceiros que contribuem para a sua manutenção”.
Para coletar os dados, aproximadamente 47 mil km foram percorridos pelos pesquisadores durante 42 expedições apoiadas pela WWF Brasil. “Tem expedições que levam 25 dias navegando com especialistas contando botos das 6 às 18 horas”, diz Marcelo. “É uma expedição que custa caro, entre R$ 70 e 100 mil e você precisa de 12 pessoas na embarcação, uma equipe na proa e outra na popa para fazer dupla checagem”.
Os dados, seguidamente atualizados na plataforma, deverão ajudar a entender se o número de botos amazônicos está aumentando, diminuindo ou permanece estável. Desde 2015 os pesquisadores contam com a ajuda de drones, como ferramenta complementar para a contagem dos botos. Além de auxiliar nas expedições, o drone tem sido testado para trazer conhecimentos sobre áreas que não podem ser alcançadas pelas grandes embarcações. “Em regiões com canais mais estreitos a gente está vislumbrando que gestores de unidades de conservação ou até comunitários possam ser treinados para lançar um drone e fazer uma estimativa de população de botos”, informa Miriam, que participou do estudo publicado pela Cambridge University.
Para entender melhor como os animais circulam pela região, desde 2017 têm sido feitas expedições para a instalação de “tags satelitais”, pequenos aparelhos instalados na nadadeira dorsal dos botos, capazes de enviar informações em tempo real via satélite sobre a localização do animal. Até o momento, os 30 botos monitorados mostraram a preferência por habitats mais conservados, especialmente as unidades de conservação.
Em seus esforços para mitigar as ameaças enfrentadas pelos botos na América do Sul, a plataforma surge como ferramenta para apoiar o desenvolvimento de políticas públicas ambientais. “Estamos conversando com o departamento que trabalha com mamíferos aquáticos dentro do iCMBio para ver como a plataforma pode auxiliar no monitoramento dos avanços do Plano de Ação Nacional para Conservação de Mamíferos Aquáticos Amazônicos”, diz Marcelo.
Abrangendo uma grande região de incidência dos animais, a plataforma também pretende colaborar com o Plano de Manejo e Conservação (CMP, da sigla em inglês), que precisará ser validado pelo Comitê Científico da Comissão Baleeira Internacional (IWC, da sigla em inglês), órgão científico internacional responsável pela regulamentação dos cetáceos. “O suporte de uma comissão internacional ajuda a fazer um pouco mais de pressão para o cumprimento das ações dos PANs (Planos de Ação Nacional para a Conservação das Espécies Ameaçadas de Extinção) de cada um dos países”, explica Mariana Frias, que atua também como curadora da plataforma.
*As informações são da Agência Mongabay