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“Todo mundo pegou”: aldeia no Alto Rio Negro fez ritual de proteção para vencer a Covid-19

Conhecedores e pajés do Alto Rio Tiquié, na fronteira com a Colômbia, usaram benzimento e remédios da mata contra o novo coronavírus
Foto: Ana Amélia Hamdan

Observando o mapa de São Gabriel da Cachoeira, no Noroeste do Amazonas, logo se vê o contorno da Cabeça do Cachorro — nome pelo qual a região é conhecida — formado pelas linhas da fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela. Damião Amaral Barbosa, de 44 anos, da etnia Yeba Masã, olha o mapa para indicar onde está sua casa. Aponta para o traçado do Rio Tiquié e, com o dedo indicador, vai subindo até encontrar logo abaixo da boca do tal cachorro imaginário, já quase na Colômbia, o Igarapé Castanha. Ali fica a comunidade de São Felipe ou Piroperi, Buraco de Cobra na língua Tukano.

Da sede do município de São Gabriel até lá são cerca de cinco dias de viagem de barco, dependendo das condições do rio. A pequena aldeia, na Floresta Amazônica, quase não tem comunicação. Televisão, nem pensar. Há poucas pessoas de fora. Mas a Covid-19 chegou e atingiu todos os 48 moradores. “Todo mundo pegou”, contou Damião.

Damião é agricultor, agente indígena de manejo ambiental (Aima) pelo Instituto Socioambiental (ISA), conhecedor tradicional e está em processo de aprendizado para se tornar um kumu, que atua junto ao pajé. Ele relata que os remédios e práticas tradicionais impediram que os casos da Covid-19 se agravassem em São Felipe, uma das comunidades indígenas localizadas na Terra Indígena (TI) Alto Rio Negro. Outros povos da região fazem o mesmo relato.

Na cidade ou nas comunidades mais próximas dos polos urbanos, houve intensa troca de informações entre indígenas sobre quais plantas deveriam ser utilizadas contra a Covid-19. As alternativas foram muitas: jambu, limão, alho, mastruz, caparanaúba, cipó saracura, entre outras.

Mas, em meio à floresta, com a comunicação escassa, os indígenas se guiaram mesmo pelos saberes dos pajés, kumua e conhecedores. Damião relata que o kumu da comunidade já havia sentido sinais da doença. Também chegaram notícias da pandemia via sistema de radiofonia da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e por meio de equipes de saúde. Com essas informações, os indígenas de São Felipe se anteciparam e providenciaram o ritual de proteção ainda em fevereiro, antes mesmo que a doença chegasse à cidade. Em São Gabriel, os dois primeiros casos da Covid-19 foram confirmados em 26 de abril.

Na cerimônia tradicional, o pajé e o kumu fazem uso do ipadu e tabaco para expandirem o pensamento e conduzirem a cerimônia, quando será feito o benzimento de substâncias para proteção, como o rapé, a pintura de carajiru e o breu-branco para defumação. Damião explica que esse ritual é realizado na maloca para proteção no cotidiano da aldeia, mas nessa ocasião tinha como objetivo conter a Covid-19.

Quando os casos da doença apareceram na aldeia, os indígenas, observando os sintomas, utilizaram os remédios da mata, principalmente carapanaúba, saracura, casa de tachi e cipó de trepadeira — todos encontrados nas proximidades de casa, onde o quintal é a floresta. “Funcionou sim, funcionou. Não temos posto de saúde ou hospital e curamos por meio dessa proteção. Ninguém teve óbito, graças a Deus. Foi a proteção e a medicina tradicional também. Usamos saracura, carapanaúba, tachi e folha de cuia trepadeira, cipó trepadeira — esse é nosso remédio que misturou”, disse.

Entre os moradores da aldeia, apenas uma criança de três anos, filha de Damião, fez o teste da Covid-19, que deu positivo. Os agentes de saúde explicaram ao indígena que, como as outras pessoas apresentaram sintomas, é possível que todos tenham tido a doença.

Desde fevereiro, Damião e a família estavam quietos na comunidade, evitando a cidade e cumprindo as recomendações das autoridades de saúde. Em setembro, seguiram para São Gabriel da Cachoeira para sacar os benefícios sociais e visitar os parentes. Foram até a região do Rio Içana, onde vivem os pais da esposa de Damião, Maria Áurea Nunes Batista, da etnia Baniwa.

Antes de retornar ao Alto Tiquié, o indígena passou novamente na cidade e visitou a sede do ISA. Guardava os objetos e substâncias de proteção: seu caracol com rapé – a casa do caracol se transforma em recipiente para rapé ao ser vedada com breu; o objeto feito com osso de macaco e utilizado para soprar o rapé no nariz; sikãta (breu-branco), carajiru para pintura e o ipadu. Trouxe notícias da pandemia na floresta. Algumas delas estão relatadas abaixo pelo site Socioambiental:

Foto: Ana Amélia Hamdan

Vocês vivem numa comunidade isolada. Como as informações sobre a pandemia chegaram até lá?

Na comunidade tem pajé. O próprio pajé teve sintomas da pandemia. Lá não temos televisão, jornais. Logo no início a gente escutou pela radiofonia que aqui em São Gabriel já tinha essa doença de coronavírus e escutamos também da equipe de saúde, que chegou lá e falou para a gente que a doença já tinha chegado e tínhamos que tomar cuidado. Logo que escutamos essa conversa do enfermeiro, convidamos o pajé e o kumu para realizar esse tipo de proteção. Nós fizemos essa cerimônia foi em finalzinho de fevereiro. Logo que ouvi falar.

 

Como é realizado o ritual do benzimento?

O tuxaua [liderança da comunidade] convida o pajé, o kumu e os conhecedores para realizar uma cerimônia, para fazer certo tipo de rito de proteção. A função do pajé é tirar a doença, é o médico tradicional. Ele indica qual é a doença e o kumu realiza o benzimento e receita o remédio dependendo da doença que o pajé falar.

Já o conhecedor ele faz a preparação para realizar esse tipo de cerimônia. Convida para catar padu. Sem padu, o pajé não tem aquele conhecimento, por isso eles vão catar a folha do padu antes da chegada do pajé e do kumu. Esse é o papel do conhecedor. Ele vai preparar ipadu, rapé, breu e carajiru [pigmento de cor vinho] para fazer a pintura corporal.

Onde é realizado o ritual?

Lá tem a maloca. As famílias moram em suas casas, mas o ritual acontece na maloca. O ritual acontece lá dentro. Os convidados chegam por volta das cinco horas da tarde. Convidamos os nossos povos Yeba Masã, também os Tuyuka e Hupdah, para eles participarem, porque eles precisam também.

O tuxaua da casa vai acolher, dar quinhapira [prato tradicional com peixe e pimenta], beiju, chibé etc. E aí ele já fala: vai acontecer assim, todo mundo está convidado a participar da cerimônia. No início da noite, todo mundo já está lá dentro esperando o benzimento.

As famílias que têm bebê e criança pequena atam rede para esperar. A cerimônia vai acabar só lá pelas três horas [da madrugada]. É um rito que dura um tempo. Depois vai dormir. Lá pelas seis ou sete da manhã, começa de novo. Prepara o caxirizinho (caxiri, bebida fermentada da mandioca) e depois vai para a dança. O pajé pensa a partir da constelação qual tipo de dança será. Porque o pajé faz a conexão com os deuses.

Para ele poder receber essa mensagem, ele usa também um tipo de paricá [pó feito a partir da casca dessa árvore] e, através desse alucinógeno, ele tem essa visão, conversa com os deuses lá do céu. O espírito A’yawa faz a conexão com o pajé.

Na cerimônia tem o rapé benzido. Quem tem caracolzinho enche lá dentro e cada um fica com o seu. O pajé já fez a proteção e, onde tu for, você carrega ele. Também tem o carajiru já benzido para pintar as pernas, braços. Todo mundo pinta. Todo mundo tem que participar.
Também tem o sikãta [breu-branco], um tipo de cera de árvore. O pajé benzeu muito isso daí, mandou essa doença voltar para onde ela veio. Por isso chegou perto de nós não muito forte.

Como a doença chegou até a comunidade de São Felipe?

A doença chegou em 3 de maio porque nessa data a gente comemora festa de santo padroeiro da nossa comunidade: São Felipe. A gente já escutava que não pode acolher pessoa estranha. Eu falei para a comunidade: bora fazer isolamento nós mesmos. Porque aqui é lugar distante, quase ninguém chega. A nossa comunidade é a última, quase na fronteira Brasil – Colômbia. A gente fala, tem gente que não obedece. E chegou o pessoal. Não teve jeito de segurar, chegaram com esse vírus já. A gente nem imaginava, falaram que era gripe, mas na verdade já era isso mesmo. Também teve gente da comunidade que veio a São Gabriel e voltou para lá.

Alguém da comunidade fez o teste para verificar a contaminação pelo novo coronavírus?

Somos 48 pessoas junto com adultos. Todos nós da comunidade pegamos. Minha filha ultimazinha caçula, de três anos, fez o teste. Lá eles [equipe de saúde] falaram que iam tirar só um teste para uma comunidade. Se achou um positivo, vão dizer que todos já pegaram. Assim que falou a equipe de saúde.

As pessoas que apresentaram sintomas da Covid-19 usaram remédios tradicionais?

Os velhos sofreram mais, principalmente meu pai, Teodoro, e minha mãe, Amália. Tiveram muita falta de ar, dor na parte do peito. Fomos tirar nosso remédio caseiro que é o cipó saracura, também carapanaúba e tem aquela casa da formiga tachi. Esse aí é bom remédio. São remédios da floresta. Para encontrar tem que ir na floresta, tem que ir no mato. Para a gente não é como cidade. Daqui a 100 metros aí já acha esse medicamento.

Tem dois tipos de cipó: tem um da folha meio fina e outro da folha da grossa. O que vale mesmo é aquele da folha fina. E tu tira esse daí, raspa o de cima. Depois raspa e esmaga, ferve um pouco. Quando ferve, dá espuma. Se tira essa espuma até que o líquido fique bem avermelhado. É bem amargo. Toma de manhã, depois do mingau. Toma de manhã, meio-dia, como se fosse remédio de branco. Não muito.

Já a casa da formiga é assim. Deixa panela fervendo no fogo e vai tirar a casa da formiga. Corta um pedaço e amassa na panela, junto com a formiga, porque o cheiro vai entrar. Diz o pajé que esse vírus tem medo do cheiro. Depois, se coa. Pode tomar como chá e para fazer um banho. Alivia a dor de garganta.

Durante a reza, o benzimento, ele faz essa formulação: chama o nome de tachi, carapanaúba, essas coisas amargas, e incorpora no nosso corpo. Medicamento dos brancos ninguém usou.

Como vocês descobriram quais remédios poderiam ser usados contra a Covid-19?

De acordo com o que a pessoa estava sentindo, ia receitando. Se está tendo uma friagenzinha, você prepara o carapanaúba. Esse a gente já usou contra malária. É bom remédio esse carapanaúba. Chegou a ir médico lá. Eu perguntei para ele por que o vírus tem nome e número. Ele falou que faz tempo que tem esse tipo de doença.

Você está aprendendo sobre os rituais de proteção e sobre os remédios tradicionais?

Os velhos escolhem o nome para ser o kumu ou para mestre de dança ou para pajé. Aí o meu avô finado ele escolheu para mim o nome para ser o kumu: Boku (em makuna, o u nessa palavra deve ser cortado) nome tradicional. Aí quem era esse Boku é o kumu, chefe da maloca que organizava, benzia, cuidava quando acontecia doença, contratempo. Faz certos cerimoniais, rito de iniciação, benze pós-parto, dá banho, benze cuia de caapi [alucinógeno feito com cipó] para ter mais visão.

Eu estou aprendendo todo finalzinho da tarde na roda de conversa, com meu pai e os mais velhos. Meu irmão Geraldo é agente de saúde, ele já trabalha com isso aí. Quando falta medicamento da medicina, se resolve com esse benzimento. Como pesquisador indígena também pesquiso história e benzimento. Eu quero ser um kumu também, como meus avós. Meu nome tradicional já indica.

 

Objetos de proteção para o indivíduo e a comunidade

Na comunidade de São Felipe, no Alto Tiquié, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), os indígenas realizam ritual de proteção contra a Covid-19. Abaixo estão alguns elementos utilizados durante essa cerimônia e que são benzidos pelo pajé. Algumas dessas substâncias os indígenas carregam consigo, garantindo proteção enquanto durar a pandemia. Veja algumas explicações dadas por Damião para esses elementos de proteção:


Rapé

Pó feito com tabaco, o rapé é o primeiro a ser benzido. Pode ser usado contra gripes e vem sendo utilizado contra a Covid-19. Damião carrega o rapé onde vai, pois assim garante proteção. Esse rapé benzido pode ser utilizado enquanto durar a pandemia.



Carajiru

É uma planta trepadeira. Retira as folhas, cozinha bem até que fique vermelho. O preparado torna-se uma goma. É feita uma bolinha com essa goma, que é colocada para secar ao sol. Depois são tirados pedaços que devem ser triturados até virar pó. Esse pó é utilizado para as pinturas corporais. O vermelho do carajiru significa o sangue do corpo.



Sikãta (breu-branco)

Faz defumação para todos os presentes cheirarem, colocando o breu-branco (resina de árvore) em uma cuia com suporte. O cheiro do breu quando jogado do fogo é muito agradável. O pajé benze todos os presentes com essa defumação. A fumaça espalha o encantamento, evita certas doenças e contratempos, além de afastar cobra, onça e curupira.



Ipadu

Apanha as folhas, torra até ficar bem seco e depois soca no pilão. Mistura com cinza de folhas de embaúba secas queimadas. Mistura bem e coa. Ajuda o kumu, abrindo o pensamento, recebendo o conhecimento para o benzimento e a cerimônia.

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