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Sobrecarga doméstica de mulheres é problema de Estado, diz secretária da ONU

Asa Regner sugere a criação de incentivos para que os homens assumam uma parcela maior dessa carga
Legenda: Asa é secretária-adjunta da ONU Mulheres desde maio de 2019. Foto: Divulgação /ONU

A divisão injusta de trabalho doméstico entre homens e mulheres deve ser alvo de políticas públicas, e não apenas uma questão familiar, defende a secretária-adjunta da Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres, Asa Regner.

“Existe uma noção de que o que acontece dentro de uma família é algo que você não consegue melhorar com decisões políticas, mas isso não é verdade”, afirma ela em entrevista à reportagem.

Para Regner, ministra da Igualdade de Gênero na Suécia entre 2014 e 2018, o mundo está longe de alcançar as metas propostas para igualdade de gênero na Conferência de Pequim, marco internacional sobre o tema.

O plano de ação adotado por 189 países em 1995 inclui o fim da violência contra a mulher, a promoção da igualdade econômica e o acesso de mulheres e meninas a serviços de saúde, inclusive reprodutiva.

A secretária também diz que, sem fiscalização, cotas para mulheres na política são ineficazes. Leia a entrevista:

Qual é a principal preocupação da ONU Mulheres em relação à igualdade de gênero hoje?

Asa Regner  – No ano passado, quando olhamos para os 25 anos da Conferência de Pequim, percebemos que estamos atrasados na plataforma acordada. Vimos que países-membros tomaram iniciativas em relação a legislação sobre violência contra as mulheres, a América Latina tem bons exemplos de leis nesse sentido, e 90 países já estabeleceram regras para que homens e mulheres possam ficar em casa com seus filhos recém-nascidos.

Mas o problema é que, depois que essas leis são feitas, poucos recursos e pouco suporte são dados para a implementação. Por isso, o que vemos é que as metas de igualdade de gênero estão caminhando mais devagar do que deveriam.

O Brasil está entre os países aquém do esperado?

AR – Não fizemos um ranking dos países-membros nesse sentido. O que posso dizer é que na América Latina a boa notícia é que a região está melhor do que a média mundial em termos de participação de mulheres na força de trabalho.

Ao mesmo tempo, os níveis de violência contra a mulher são altos, assim como o feminicídio. Algo que nos preocupa na América Latina é que uma grande proporção de mulheres estava empregada informalmente, e esses trabalhos desapareceram [com a pandemia], deixando-as sem renda, sem proteção social, seguro-desemprego.

 

O mundo todo está sofrendo as consequências sociais e econômicas da pandemia, e as mulheres foram atingidas com mais força do que os homens. Mas vemos na América Latina uma deterioração da situação de emprego e violência contra a mulher em relação aos próprios índices locais anteriores.

 

A sra. acredita que a ascensão de governos de direita dificulta a aceleração dessas metas?

AR – Vemos no mundo uma tendência de mais nacionalismo e de movimentos e governos de direita. Muitas vezes, mas nem sempre, esses partidos ou lideranças têm visões tradicionais de família, o que geralmente significa enxergar a família como um casal de homem e mulher em que o marido é quem traz o sustento financeiro.

Esse modelo está voltando ou ganhando força, mas não significa que todos os partidos de direita vão priorizar isso. Nos países escandinavos, por exemplo, há partidos que podem ter essa visão internamente, mas não vão tentar impor isso se chegarem ao governo.

Mas a pauta de igualdade de gênero é associada, às vezes pejorativamente, a uma plataforma de esquerda. Como fazê-la avançar para fora desse espectro?

AR – A ferramenta que temos nesse sentido são os tratados internacionais, como a Declaração de Pequim. Esses documentos não são de esquerda nem de direita, são acordos entre países, e não entre governos específicos.

Quando um país concorda e ratifica um acordo, ele está ligado a essas metas, independentemente de governo.

As mulheres em diversos países estão ainda mais sobrecarregadas em casa devido à pandemia. A sra. já disse que isso não é apenas uma questão intrafamiliar, mas de governo. Pode explicar?

AR – Existe uma noção comum de que o que acontece dentro de uma família, ou relacionado a papéis tradicionais de gênero, é algo que você não consegue melhorar com decisões políticas ou vontade política, mas isso simplesmente não é verdade.

Se você está no comando de um país e vê que as mulheres estão sendo prejudicadas por uma carga injusta de trabalho não remunerado, há muito o que fazer.

 

Você pode criar licenças ou incentivos para que os homens assumam uma parcela maior dessa carga, pode criar modelos de igualdade de remuneração para que o argumento de que mulheres ganham menos não seja válido quando a família for discutir quem fará o trabalho não remunerado, pode também ter programas de cuidado para idosos e crianças que sejam geográfica e financeiramente acessíveis.

 

Às vezes ouço as pessoas dizerem “ah, a próxima geração vai resolver isso” ou “em dez anos teremos igualdade”. Mas isso não acontece de modo orgânico nem mágico. É preciso vontade política.

O Brasil tem uma política de cotas para candidaturas femininas. Esse modelo vem sendo questionado por resultar em fraudes eleitorais, como candidaturas-laranja, além de a participação feminina estar aquém do desejado. A sra. foi ministra na Suécia, onde há paridade de gênero no Parlamento. Como ampliar a representatividade?

AR – Curiosamente, a Suécia não tem cotas ou nenhuma medida especial para promover essa paridade. Lá, isso aconteceu por intermédio dos movimentos de mulheres, que pressionaram os partidos políticos. Elas articularam de uma forma que os partidos que não adotaram a paridade de gênero em seus quadros passaram a ser vistos como antiquados -e a tradição permaneceu.

Mas nós entendemos, e é como a plataforma de Pequim também vê isso, que ações afirmativas são importantes para sair de um Congresso dominado por homens para um mais igualitário. Se há pressão suficiente para se criar uma lei nesse sentido [como no Brasil], é preciso que haja também vontade política para responsabilização em casos de abuso desse mecanismo, ou obviamente ele não vai funcionar.

Chegamos a uma questão do tipo “ovo ou galinha”. Se não há vontade política, não há mudanças. Mas como gerar vontade política sem mulheres em espaços de poder?

AR – A maior parte da mudança em termos de igualdade de gênero foi capitaneada pela sociedade civil, organizações de mulheres etc., e eu sei que no Brasil há várias mulheres inteligentes e bem organizadas. São extremamente importantes o papel e o financiamento desse tipo de iniciativa. Esse é um dos objetivos da conferência que fizemos no México no final de março e vamos fazer depois em Paris, a Generation Equality.

Consideramos que estamos em uma crise de desigualdade de gênero no mundo e por isso convidamos as organizações para esse encontro. Se você olhar a história da igualdade de gênero, todos os avanços foram conduzidos por esses grupos.

Raio-X Asa Regner, 56

Secretária-adjunta da ONU Mulheres desde maio de 2019. Foi ministra da Criança, do Idoso e da Igualdade de Gênero (2014-2018) na Suécia e diretora da ONU Mulheres na Bolívia (2013-2014). Também atuou como diretora de planejamento no Ministério da Justiça (2004-2006).

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