Em maio de 2020, quando faltou oxigênio para pacientes com Covid-19 no único hospital de São Gabriel da Cachoeira (AM), uma grande mobilização evitou uma tragédia maior. Em poucas horas, instituições que atuam na região conseguiram transportar cilindros de Manaus ao município a tempo de impedir que os doentes morressem asfixiados. Quase um ano depois, e em meio à crise sanitária que persiste, a aliança emergencial entregou à população um reforço importante: uma usina de oxigênio, inaugurada nesta última segunda-feira (19/04).
De acordo com a reportagem do ISA, o episódio sombrio, descrito acima de forma resumida, acendeu um alerta entre as lideranças indígenas e instituições parceiras dos povos do Rio Negro. Apesar da operação bem sucedida, o desafio de suprir a demanda de oxigênio de São Gabriel da Cachoeira, distante 850 quilômetros de Manaus, permaneceu.
Além disso, a situação no estado seguia precária. O sistema de saúde do Amazonas foi o primeiro do país a colapsar na primeira onda pandêmica e, em 14 e 15 de janeiro deste ano, a capital protagonizou o primeiro momento dramático de 2021, com dezenas de pacientes morrendo devido à falta de oxigênio na segunda onda.
Naqueles dias, o pulmão do mundo parou como prenúncio da “catástrofe humanitária” que vivemos no país, como comunicou a organização internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) em 15 de abril. “A falta de vontade política de reagir de maneira adequada está causando a morte de milhares de brasileiros”, disse o presidente da organização Nobel da Paz, Christos Christou.
O MSF atuou em São Gabriel da Cachoeira em parceria com a Foirn, Instituto Socioambiental (ISA) e Secretaria de Saúde do município, assim como em outros locais do Amazonas, nos momentos mais severos da pandemia.
“Nós tínhamos que melhorar a infraestrutura de saúde para os 23 povos indígenas do Rio Negro e a conquista desta usina de oxigênio é um legado para a região. A negligência do governo federal com a população brasileira e em especial com os mais vulneráveis como os povos indígenas, é uma vergonha mundial. Se não fosse pela união das instituições, teríamos visto uma enorme tragédia humanitária no Rio Negro”, ressaltou o presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Marivelton Barroso, do povo Baré.
Parceria e união de esforços
A usina de oxigênio foi doada pelo Greenpeace à Foirn em um esforço coletivo com as organizações parceiras: ISA, Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e Expedicionários da Saúde (EDS). A planta será gerida pela Prefeitura Municipal de São Gabriel da Cachoeira, cujo prefeito, Clóvis Corubão (PT) é da etnia Tariana. Instalada na Unidade Básica de Saúde (UBS) Miguel Quirino, a usina teve custo total de R$ 750 mil e poderá abastecer 12 cilindros de 50 litros diariamente, com oxigênio a 95% de pureza.
Durante o lançamento da usina na UBS Miguel Quirino, o ISA assinou com a Foirn o Acordo de Cooperação Técnica para gestão da planta com a Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira e os Distritos Sanitários Especiais de Saúde Indígena (Dsei) do Alto Rio Negro e Yanomami, que atuam na região.
“A colaboração da sociedade civil organizada para esse aporte ao sistema público de saúde da região do Rio Negro é uma conquista importante que demonstra a força do diálogo e das parcerias. Em diálogo e cooperação é possível enfrentar de forma articulada mais dimensões de um desafio e prover benefícios para toda a sociedade e, em especial nessa região, remota, para [e com] os povos indígenas”, comentou a antropóloga do Programa Rio Negro do ISA, Carla Dias.
A usina terá uma equipe técnica treinada para seguir com o envase dos cilindros. O processo consiste na captação, filtragem, compressão, resfriamento e purificação do oxigênio para transformá-lo em oxigênio medicinal com 95% de pureza.
No concentrador da usina, oxigênio, carbono e nitrogênio são separados e o O2 é reservado em forma gasosa.
“É admirável pensar que organizações indígenas serão responsáveis pela produção de oxigênio que irá salvar vidas na cidade que tem a maior população indígena do país. Este protagonismo assume um papel ainda mais relevante porque ocorre no momento em que o Brasil enfrenta o pior pico da Covid-19″, avaliou André Freitas, coordenador da Campanha Amazônia do Greenpeace Brasil.
“Certamente, toda essa região estará mais preparada para o enfrentamento da pandemia daqui pra frente, especialmente se ocorrer uma terceira onda”, pontuou.
Além de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos (Médio e Baixo Rio Negro), que somam uma população aproximada de 100 mil pessoas, também serão beneficiados pela usina de oxigênio. A vice-prefeita Eliane Falcão, do povo Tukano, que representou a Prefeitura na cerimônia de lançamento da usina, afirmou que “a união das instituições é muito importante para o nosso município. E essa usina de oxigênio será cuidada por nós como um pai e uma mãe que zelam pelo filho”.
Para Nara Baré, coordenadora geral da Coiab, este é um importante legado para a população da região do Rio Negro. “A usina é resultado de um diálogo que iniciamos em dezembro de 2020 e sua implantação é estratégica pela abrangência da área que será atendida. Essa conquista é um legado para a população, e para chegar a esta definição tivemos o desafio de pensar estrategicamente onde a usina seria instalada, realizar todo o mapeamento da área e optar por um lugar onde, de fato, ela beneficiaria o maior número de pessoas”, explicou.
Improbidade administrativa
No último dia 14 de abril, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma ação de improbidade administrativa contra o ex-ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello por omissão no combate à pandemia entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, quando o Amazonas registrou colapso de oxigênio das unidades de saúde.
No documento, o MPF identificou atos de improbidade administrativa em cinco aspectos:
– Atraso e lentidão do Ministério da Saúde no envio de equipe para diagnosticar e reduzir a nova onda de Covid-19 no Amazonas.
– Omissão no monitoramento da demanda de oxigênio medicinal e na adoção de medidas eficazes e tempestivas para evitar seu desabastecimento.
– Realização de pressão para utilização do chamado “tratamento precoce”.
– Demora na adoção de medidas para transferência de pacientes que aguardavam leitos.
– Ausência de medidas de estímulo ao isolamento social.
O MPF indica que as autoridades estaduais e federais deveriam ter elaborado e colocado em prática planos de contingência para novas ondas de contaminação logo após a devastadora primeira onda em Manaus. “Entretanto, o que se viu foi uma série de ações e omissões ilícitas que, somadas, violaram esses deveres e contribuíram para o descontrole da gestão da pandemia no Amazonas, com o colapso do fornecimento de oxigênio e decorrente óbito por asfixia de pacientes internados”, diz um trecho da ação.
* Com informações dos Médicos Sem Fronteiras e do G1 Amazonas/Rede Amazônica