As ciências biológicas e humanas já se debruçaram um bocado sobre o tema, mas nunca chegaram a uma teoria que fosse de aceitação unânime. O senso comum, no entanto, parece ter isso como claro –existe uma relação muito especial entre um rapaz gay e sua mãe.
Não, não se está dizendo aqui que todo homossexual necessariamente tem esse elo tão forte com quem o trouxe ao mundo —e, menos ainda, que as relações entre mães e filhos heterossexuais, ou entre mães e filhas, sejam elas hétero ou LGBT, não sejam tão intensas e amorosas quanto as de filhos gays e suas mães. O ponto é outro.
É que parece existir algo muito específico nessa relação, um tipo de cumplicidade nunca abertamente expressa, mas que tanto a mãe quanto o filho gay compreendem bem. Ou, se não entendem, ao menos sentem —e isso já basta.
E a arte audiovisual tem sido pródiga em retratar esse envolvimento, que muitas vezes parece ter uma natureza mística, cósmica. Se a morte precoce do Paulo Gustavo aconteceu a só cinco dias do Dia das Mães, parece menos uma triste coincidência do que obra dessa estranha metafísica.
Em sua obra, o ator-dramaturgo deixou isso evidente, mas essa conexão não passa apenas pelo âmbito das sensações ou emoções.
Paulo Gustavo a absorveu em seu próprio corpo. Ele mesmo foi a dona Déa Lúcia reinventada na arte. Homenagem e desejo de continuidade —como que aceitando instintivamente a ideia de que um gay não pode transmitir geneticamente os traços e maneirismos herdados pela mãe, resolveu imortalizar isso no cinema.
Não são poucos os artistas que também tentaram, a seu modo, deixar para sempre vivo na tela um pouquinho da mulher que mais amaram.
Dois dos filmes mais bem-sucedidos do cineasta Xavier Dolan, por exemplo, foram inspirados nas próprias experiências familiares do jovem canadense –“Eu Matei Minha Mãe”, de 2009, e “Mommy”, de 2014.
Pedro Almodóvar, ganhou um Oscar de longa em língua estrangeira justamente por “Tudo Sobre Minha Mãe”, de 1999, que ele dedicou, entre outros, a Francisca Caballero, sua mãe. E uma das figuras mais recorrentes na mente do protagonista de seu autobiográfico “Dor e Glória”, de 2019, é a de uma bela mulher, lavando roupas em um rio —inspirada na mãe.
O cineasta Pier Paolo Pasolini teve dificuldades para encontrar o rapaz para viver Jesus Cristo em “O Evangelho Segundo São Mateus”, de 1964, um de seus filmes mais controversos. Já para o papel de Maria, consta que a escolha foi bem mais simples. Chamou sua própria mãe, Susanna Colussi, que ele via como intérprete natural daquela mulher, ao mesmo tempo virgem e mãe de Deus.
Essa visão sacralizada da figura materna –e que, também, denota certo narcisismo– Pasolini voltaria a mostrar em outros filmes, só que reservando o papel principal a grandes divas.
Em “Mamma Roma”, de 1962, escalou Anna Magnani para ser a prostituta que representava uma cidade. Para “Édipo Rei”, de 1967, convidou Silvana Mangano para o papel de Jocasta, personagem que usaria acessórios da própria mãe do diretor. E, para sua releitura de “Medeia”, de 1969, recorreu a ninguém menos que Maria Callas, cuja voz foi usada como trunfo ao interpretar a responsável pelo filicídio famoso da dramaturgia mundial.
Pasolini é um exemplo emblemático desse elo entre artista gay e sua mãe. Suas escolhas para interpretar figuras maternas tão imponentes em seu cinema jogam luz sobre uma questão correlata –de todos os arquétipos femininos, o da mãe e o da diva talvez sejam os mais poderosos dentro do imaginário queer masculino.
Muito frequentemente, aliás, eles vêm juntos. Não são poucos os gays que veem divas incontestáveis em suas mães, ou que encontram na imagem de suas ídolas um conforto quase maternal.
Com tamanha proximidade afetiva, haveria algo de incestuoso nessa relação? Ao menos no cinema, por vezes, sim. Em “Os Deuses Malditos”, de 1969, Luchino Visconti pôs a bergmaniana Ingrid Thulin para se deitar com o viscontiano Helmut Berger, no ápice de uma complexa relação entre a matriarca de uma família decadente e seu herdeiro, que adorava imitar Marlene Dietrich.
Christophe Honoré bebeu em fonte semelhante em “Minha Mãe”, de 2004, inspirado na obra de Georges Bataille, sobre um rapaz hétero e sua mãe, mas levado ao filme com uma sensibilidade peculiarmente queer.
E François Ozon foi um pouco mais longe. Uma mulher tenta seduzir o próprio filho como tentativa de “curar” a homossexualidade do garoto, na comédia ácida “Sitcom – Nossa Linda Família”, de 1998.
Não nos esqueçamos de que Rainer Werner Fassbinder sempre dava um jeito de incluir sua própria mãe, Lilo Pempeit, em alguns papéis de seus filmes —menores, mas sempre escolhidos a dedo para ela.
O mesmo fazia, na nossa TV, o diretor Jorge Fernando, que deu a chance de sua mãe estrear como atriz já na terceira idade, num papel da novela “Que Rei Sou Eu?”, de 1989 —na época, ficou famosa a história de que a estreante tinha ido parar no Guinness Book, como a mulher mais velha a se iniciar na carreira.
Como Déa Lúcia Vieira Amaral, Hilda Rebello viveu um ciclo antinatural –viu o filho morrer antes dela. No entanto, só dois meses após a morte de Jorge Fernando, a atriz também se foi e, embora ela já tivesse 95 anos, é muito provável que vivesse um bocado mais caso o filho não tivesse morrido antes dela.
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O fato é que existe nessa relação tão evidenciada na arte um pacto silencioso, de dois cúmplices, do qual muitas vezes mãe e filho nem sequer se dão conta e cuja natureza talvez se aproxime do que escreveu recentemente o pesquisador em audiovisual Jocimar Dias Jr, da Universidade Federal Fluminense, em uma comovente postagem numa rede social. “É uma aliança com a mãe contra o patriarcado. É um amor pelo ‘feminino’ como recusa àquela outra opção dada a nós, a ‘masculinidade’ insossa, tediosa e insuportável.”