Aconteceu há algumas semanas: um casal de cerca de 30 anos com suas duas filhas gêmeas (chamavam-se Cecília e Beatriz) e uma amiga curtiam a manhã na praia. Era cedo, antes das 9 horas, mas a areia já estava cheia. As bebês, bem protegidas e na sombra, brincavam dentro de piscinas de plástico.
Em determinado momento, a amiga foi embora e ficou só o casal com as crianças. O pai ia e voltava do mar, não existia muito papo, e a mãe insistentemente fazia o que toda mãe de crianças pequenas faz: conversa em voz alta com a cria para justificar atitudes para os adultos no entorno. “Você tá cansada, né?”, “Acordamos cedo!”, “É a nossa primeira praia!”, “Come mais esse biscoitinho já que ontem você não quis nada!”.
Hora de ir embora. É um acampamento que precisa ser levantado. Elas choram para trocar de roupa, choram porque não estão no colo da mãe, só choram. O pai, com as duas no colo, começa a se irritar e fala alto para a mãe acelerar. Ela segue juntando roupas, comida, brinquedos e falando com as bebês, com o entorno, com ela mesma, com o marido. Num rompante, ele se transforma e grita violentamente abafando o choro alto: “Anda, caralho, porra! Caralho, caralho! Anda!”
A mãe olha de cabeça baixa, para de falar, levanta com bolsas e pega as duas crianças. As piscinas ficam. Eles vão embora.
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Nos últimos dez dias ouvi, vi, conversei e li muito sobre A filha perdida, adaptação do livro homônimo de Elena Ferrante, que virou filme na Netflix, dirigido pela Maggie Gyllenhaal e estrelado por Olivia Colman e Jessie Buckley (brilhante no papel da protagonista mais jovem). O enredo é focado em Leda, uma professora universitária que viaja para Nápoles (no filme, Grécia) para passar férias. Ela tem duas filhas de cerca de 20 anos que moram com o pai no Canadá. Durante o período que deveria ser de descanso na praia, ela conhece uma família barulhenta e fica um tanto obcecada com uma mãe, Nina, e sua filha pequena, Elena, criando um relacionamento que traz à tona lembranças e conflitos internos sobre sua própria maternidade.
Eu li essa história em 2016, antes de ser mãe, e na época ela já tinha me atingido no peito como todas as obras da Ferrante, que escancaram a ferida e cospem em cima. Revisitar o texto agora na tela – registrando que pela primeira vez isso foi feito por uma mulher – foi algo muito potente para mim depois de gerir, parir e criar uma criança de quatro anos, estando grávida de outra. É impressionante as camadas diferentes que podemos alcançar a partir do mesmo estímulo com o passar do tempo.
“Ela me suga”, diz Leda ao se referir a uma das filhas. E não, ela não é mais um bebê. A criança suga a mãe todo o tempo. Desde dentro da barriga, passando pelo peito até crescer. Tem algumas, inclusive, que não desmamam nunca.
A energia da mulher se esvai pouco a pouco. Todos os dias. Você esquece quem é, o que faz, o que gosta. No início, porque você quer (ou parece que a sociedade faz você querer) e depois porque você já não lembra mais como era. É uma espiral complexa de isolamento social estruturado e um silêncio que vai nos restringindo à uma única função. Até você quase enlouquecer e querer começar a gritar. E isso não tem nada a ver com falta de amor.
No livro, mergulhamos em devaneios, lembranças e o que se passa dentro da cabeça da Leda e Nina, personagens tão complexas e difíceis de entender. E a razão é uma só: elas não existem para agradar quem lê ou assiste. Não há interesse nisso e não é essa a função de mulher alguma. No filme, não há voz em off, portanto, é bem impressionante como os detalhes, os silêncios e as coisas não ditas vão explicando muito sobre a história, o que se passa e o que se passou. É um olho cheio d’água que a lágrima não desce, um corte pequeno nas costas, porém profundo, que dói, toques de telefone e, principalmente, o que fizemos com nossas bonecas na infância.
Por trás de uma filha perdida tem sempre uma mãe querendo se reencontrar. A mulher que era, a mulher que é ou a que se transformou. Há uma dor universal, latente e sufocante que nos atinge em cheio. Ela é represada e abafada todos os dias com um curativo sujo. De vez em quando, o grito escapa e quem já viveu ou vive reconhece o mesmo som agudo que pode aparecer de diversas formas: em livro, filme, foto e tweet, na fresta da porta ou em uma fuga de casa.
Aqui, o barulho que venho escutando nos últimos dias é o de um choro alto e salgado de criança que vem da praia: da Elena na Grécia, ou em Nápoles, soluçando pela boneca, e de Cecília e Bia no Rio de Janeiro sofrendo pela mãe. O resto é só silêncio e violência.
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Heloiza Daou é movida a palavra e um pouco obsessiva. É diretora de marketing na Intrínseca e também mãe do Tomás, o job mais insano e amado da vida.