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O quão rápido você lê?

Demorei três meses para ler um livro de 186 páginas. Não foi por falta de tempo ou de vontade. Li alguns outros durante o mesmo período. Era um que eu já tinha começado em outra época e não tinha conseguido seguir e agora me vi disposta a tentar de novo. O livro é ruim? Longe disso. Por que eu simplesmente não desisti? Não sei. Só sei que tinha de ser assim.

 

Existe alguma aura instaurada no universo da literatura que parece que se o livro é bom a gente lê rápido. Ou melhor: economiza página para ele durar mais. Se a gente fica um pouco mais de tempo carregando aquelas páginas, olhando para aquela capa, parece que vem um sentimento de que, talvez, o livro não seja para gente. Como se pressa e rapidez fossem sinais de boas leituras. Na verdade, eles falam mais sobre processos do que sobre conteúdos.

 

Me encanto um pouco com cada livro que eu travo. Fico sempre me questionando o porquê. Quando entendo que não está me acrescentando em alguma coisa eu largo sem dor, mas quando eu sinto que tem algo ali que não consigo decifrar pra seguir, eu fico obcecada mesmo. É que tem leituras que não só fazem a gente pensar em algo não avaliado antes. Tem textos que doem fisicamente mesmo.

Dias de abandono, de Elena Ferrante, (Biblioteca Azul, 2003) foi assim. As páginas passaram devagar, o pensamento foi longe e voltou diversas vezes, algumas ideias antigas ganharam corpo e, como sempre, algumas frases foram muito difíceis de engolir. Que incrível o poder do texto que atravessa o peito e faz doer. Literatura pode ser um afago de navalha.

 

“Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar.” Assim Ferrante inicia a história de Olga, uma mulher com dois filhos e um cachorro que é abandonada pelo marido depois de quinze anos de casamento. Olga não entende o que se passa, tenta de todas as formas convencer o marido a ficar, perde, sofre e luta: com os filhos, com o ex-marido, com a casa que ficou para cuidar, com o cachorro e claro, com ela mesma.

 

São duras as páginas que vemos Olga se perder. Ela parece ficar seca, oca, tomada pela raiva e pelo rancor. E mesmo acompanhando uma personagem odiosa, é difícil não se identificar com essa mulher em alguns momentos. Existe uma linha tênue e bamba em que todas as mulheres se equilibram. Ora os dois pés estão apoiados, ora o abismo se abre. A protagonista flutua nessa linha, se amarrando, se enrolando, criando nós que, ao mesmo tempo, complicam as situações, mas mantém ela em pé. E, de novo, é difícil não se sentir como ela.

 

“Vezes sem número a mulher é temerosa, covarde para a luta e fraca para as armas; se, todavia, vê lesados os direitos do leito conjugal, ela se torna, então, de todas as criaturas a mais sanguinária”. Poderia ser a Olga, mas não, o trecho é de Medéia, de Eurípides, releitura indicada por uma amiga que leu um artigo em que comparavam e ligavam as duas personagens, separadas por muitos e muitos anos de diferença. Esse sim é um texto mais diferente da prosa habitual,  cheio de entrelinhas e referências complexas, mas que, vejam só, engoli em 1h30.

 

Que tal então pararmos de pensar em seguir padrões ou bater metas enquanto lemos? Que tal repensarmos a ideia equivocada de que tudo que é bom precisa ser consumido rápido para sairmos na frente: sejam livros, filmes, séries ou áudios de WhatsApp. Essa pressa está tirando a nossa capacidade de sentir as coisas, principalmente, as mais incômodas ou que as que nos fazem refletir.

 

O mundo já está muito doido, eu sei, mas acredito que o processo de leitura e os impactos do texto tem muito a ver com o retrato de determinado instante da vida. Se a leitura for antes ou depois daquele deste instante, as transformações (ou a ausência delas), podem ser completamente diferentes. Ter a consciência de que o momento da leitura é passe único, independente do tipo, enredo ou dificuldade do livro, faz com que a gente finalmente pare de correr e de contar e olhe para a página de dentro, abrindo espaços de parágrafo e cultivando novas e reais anotações: nos livros e na gente.

 

*Heloiza Daou é movida à palavra e um pouco obsessiva. É diretora de marketing na Intrínseca e também mãe do Tomás, o job mais insano e amado da vida.

 

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