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Numa espiral nebulosa de invenções cênicas e musicais, “Cabelos Arrepiados” estranha e encanta magistralmente

*Por Leidson Ferraz, Crítico convidado

 

Seis crianças não conseguem dormir. Isso porque alguém ou algo vem roubando seus sonhos. Sem necessariamente adentrarmos num pesadelo de olhos abertos, somos convidados a lhes acompanhar por um percurso de estórias nebulosas, fantásticas e muito, muito estranhas, tudo para que finalmente o sono chegue a cada uma. Esse pode ser o resumo de “Cabelos Arrepiados”, produção da Buia Teatro Company, que congregou artistas de Manaus e do Rio de Janeiro numa das realizações mais bem-sucedidas do recente teatro do Norte do Brasil. Tanto que abocanhou nove dos dez prêmios da categoria infâncias no XVIII Festival de Teatro da Amazônia (FTA). Eu estava na comissão julgadora e atestei a sua qualidade.

 

Desde que estreou em 2021, ainda no formato online (primeiramente pude assisti-la assim), “Cabelos Arrepiados” não parou de se aprimorar e já passou por inúmeros palcos no Brasil, muito graças ao Circuito Palco Giratório, do SESC, chegando até Córdoba, na Argentina. Presencialmente, vi a peça no Recife, mas também aqui em Manaus, e agora chegou a vez de conferi-la no Teatro ICBEU, por conta do “Festival SESI Cultura Infância – Uma Visão de Futuro”. O impacto positivo foi o mesmo, tendo um detalhe como novidade: a estreia da atriz carioca Chris Rebello no elenco, na difícil tarefa de substituir Maria Hagge que está grávida e precisou afastar-se da peça (além de ser uma das intérpretes, ela concebeu os figurinos da exuberante montagem). Mas tudo correu bem. Aliás, as frases cantadas e faladas estavam com som bem mais cristalino desta vez (design de Murilo Acioli).

 

Tico, Cora, Flora & Dora, Clara e Ciro (distribuídos pelos atores Dimas Mendonça, Chris Rebello e Magda Loiana) são as personagens criadas pela dramaturga Karen Acioly, crianças insones que são o avesso do que se espera da meninice. Estranhas, pouco sociáveis, de temperamentos difíceis, super inventivas nas suas introspecções ou até mesmo gêmeas siamesas ligadas por um só coração, são figuras assim que acompanhamos numa noite em que o sono não chega. Dois narradores musicais sinuosos, Juca e Chico (Roque Baroque e Gustavo Gutemberg), nos conduzem nesse caleidoscópico tufão de melodias, imagens, névoas e até seres aterradores. A direção de arte pautada no expressionismo alemão é primorosa, mas fica impossível não se remeter também ao universo fílmico de Tim Burton e suas invencionices bizarras.

 

Aqui, tudo também é mistério e estranheza – a iluminação de clima noir bem recortada, assinada por Orlando Schaider e Tércio Silva, é um show à parte – e o maior barato é perceber a liberdade que a equipe tomou em catapultar (no melhor sentido da palavra) a dramaturgia para uma opereta infantojuvenil sombria em que as frases do texto original ganharam uma partitura surpreendente. As composições são de Jeferson Mariano. Toda essa moldura cênica e musical dá a chance da plateia mirim ou adulta experimentar uma gama de novas sensações no teatro, algo que acontece bastante diante das telas, mas pouco frente a um palco de madeira num espetáculo ao vivo: o estado de temor, de não saber lidar com o desconhecido, de até esconder-se na cadeira com medo do que pode vir e isso é raro no que se faz por aí, especial até.

Na condução do diretor Tércio Silva – também responsável  pelo cenário – nada está por acaso, pois cada detalhe revela um teatro feito para crianças (de todas as idades) como território de investigação. Da trilha que passeia do dedilhar delicado no piano ao rock pesado da guitarra elétrica; dos figurinos que exploram texturas e cruzamentos entre o branco, o cinza e o preto à maquiagem a ressaltar olheiras, palidez e esmaltes pretos nas unhas das personagens; da cenografia giratória à la Alfred Jarry à aposta certeira no amalgamar entre humanos (com ótimo elenco), bonecos e formas animadas, concebidas e executadas por Cleyton Diir e Bruno Dante (dois belos momentos preciso lembrar: o menino/boneco Tico sem controle sobre os pés na transformação que o leva a virar serpente; e a presença intrigante de um ser abusador que cresce e flutua por uma técnica que o corporifica no papel de seda, criação do artista amazonense Nonato Tavares).

 

O resultado dessa ousada versão de “Cabelos Arrepiados” é hipnotizante, lisérgico, embaralhador, sem pudor de tocar nas fobias, no abuso, na dor física, no incômodo mental, num mundo pior possível, mas também tratando do poder do amor, da amizade, da força do diálogo em família, da luta contra o consumismo, e do quanto é possível superar o medo e os maus pensamentos. Afinal, somos feitos da mesma matéria que os sonhos. E sonhos são poesia necessária, como a Buia Teatro Company fez magistralmente. Aplausos demorados!

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