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Mulheres indígenas do Rio Negro fazem chamado à autonomia: “precisamos perder o medo de falar”

FOTO: Ray Baniwa Foirn

Mulheres indígenas que vivem no Rio Negro se reuniram em São Gabriel da Cachoeira (AM) para escolher duas representantes do Departamento de Mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Dmirn/Foirn) no período de 2021 a 2024. Representantes Baniwa, Tukano, Koripako, Yanomami, Baré, Arapaso, Wanano, Desana, Dâw, entre outras etnias, viajaram até três dias de barco para participar da VIII Assembleia Eletiva das Mulheres Indígenas, que teve como tema “O Protagonismo das Mulheres pelo Bem Viver Indígena no Rio Negro” e aconteceu nos dias 29 e 30 de outubro. É a primeira vez que todas se encontram desde o início da pandemia.

As mulheres relataram, conforme a reportagem do portal Isa, as dificuldades vividas durante o pico da crise sanitária, mas se mostraram fortalecidas. Suas demandas durante a assembleia tinham um denominador comum: o desejo por mais autonomia. Além de defender a patente de remédios tradicionais usados contra a Covid-19, elas divulgaram uma carta-manifesto por um sistema de segurança e de Justiça que, de fato, as proteja. Também apoiaram melhorias no atendimento de saúde e políticas de geração de renda. Finalmente, ressaltaram a importância de uma melhor infraestrutura para desenvolver seus projetos, como embarcações, combustível, alojamento na cidade e recursos.

As atuais coordenadoras do Departamento de Mulheres, Elizângela da Silva, da etnia Baré, e Janete Alves, do povo Desana, consideram que o movimento das mulheres está mais fortalecido. Mesmo tendo enfrentado a pandemia no último ano de gestão – o que levou a adiamento de projetos – elas atuaram no enfrentamento à doença, o que também resultou em fortalecimento do Dmirn e dos saberes tradicionais. Os remédios e rituais indígenas foram amplamente utilizados pelos indígenas do Rio Negro no combate à Covid-19.

Em 2020, quatro das cinco coordenadorias regionais da Foirn, abrangendo um território de aproximadamente 110 mil quilômetros quadrados e 23 povos indígenas, indicaram concorrentes ao departamento. Para Elizângela Baré, a indicação de quatro candidatas é um importante indicativo do fortalecimento do movimento das mulheres indígenas. “Como estamos com quatro mulheres concorrendo, é dizer que estamos empoderadas. Tem quatro mulheres interessadas em concorrer ao departamento. Agora, se a gente visse que não tinha uma mulher para concorrer, aí sim, não seria bom. Quando eu vim para cá, não tinha ninguém querendo concorrer, ninguém queria. Eu e Janete fomos indicadas na hora. Agora não: tem quatro mulheres. Quer dizer que estão sabendo das coisas e querem dar continuidade ao movimento. Para mim é uma conquista”, disse.

Tanto Elizângela quanto Janete apontam que esse fortalecimento do Dmirn teve apoio da diretoria da Foirn e de seu presidente, Marivelton Barroso, da etnia Baré. “No início foi mais difícil, mas depois fomos conseguindo esse apoio”, contou. Outro indicativo do fortalecimento é a existência de projetos próprios entre algumas associações das comunidades. No entanto, segundo Elisângela, é necessário integrar mais mulheres ao movimento indígena.

“Precisamos fortalecer outras associações, trazer mais mulheres para discutir, propor e fazer encaminhamentos a favor das mulheres. Essa é a parte principal de fortalecimento. No momento em que você encaminha uma proposta, encaminha uma demanda, é nesse momento que você está fazendo seu fortalecimento como mulher indígena, de estar no mesmo espaço de decisões. Precisamos nos fortalecer, perder o medo de falar. A gente precisa ser ouvida e respeitada para que a nossa demanda saia da teoria e se torne uma coisa prática, vivenciada. Estar no mesmo espaço, de mãos dadas, caminhando junto pelo bem viver das mulheres, dos povos. Eu penso desse jeito”, afirmou.

Um dos projetos iniciados pela atual gestão e que deve ser desenvolvido no próximo ano é o curso de formação em gestão oferecido pela ONU Mulheres. “Essa é uma semente importante para a geração de renda”, avaliou Elizângela.

Janete explica que um dos objetivos do Dmirn é articular e fortalecer as associações das mulheres no território indígena. Ela avalia que o departamento atuou nesse sentido, mas em 2020 alguns projetos foram prejudicados devido à pandemia. Elas direcionaram os esforços ao combate da Covid-19 e encabeçaram a Campanha Rio Negro, Nós Cuidamos, desenvolvida em conjunto pela Foirn e Instituto Socioambiental (ISA). Mesmo durante a pandemia, viajaram ao território, seguindo os protocolos sanitários, para distribuir alimentos, material de limpeza e higiene, máscaras e informação.

FOTO: Ray Baniwa

“Em 2020 chegou a pandemia, que nos atrapalhou muito. Tínhamos planejado muitos projetos para fechar o mandato com ‘chave de ouro’. Mas a gente não deixou de lutar pelas mulheres. Conseguimos através da campanha atingir e fortalecer mais as mulheres”, relatou. Ela reforça a importância das bases. “Conseguimos atender as associações do centro e essas associações articulam com as calhas. A gente conseguiu fortalecer com a ajuda das mulheres. Elas deram o maior apoio e recebemos apoio da diretoria e presidência da Foirn”.

Elizângela e Janete vão continuar atuando no movimento indígena. Elizângela fará parte do conselho fiscal da Foirn e assumirá a presidência da Associação das Mulheres Indígenas do Rio Negro – Juruti a São Francisco (Amirn). Janete será a única mulher na diretoria da Foirn, como diretora de referência da Coordenadoria das Organizações Indígenas do Distrito de Iauaretê (Coidi).

Lideranças

Liderança indígena, professora e artesã, Cecília Albuquerque, primeira coordenadora do Dmirn, participou da Assembleia Eletiva e aponta que um dos grandes desafios do departamento é o apoio às associações das indígenas nas bases, dentro do território. Ela avalia que, sem essa ação, será difícil o fortalecimento do movimento das mulheres indígenas. Por outro lado, ela percebe que a participação das mulheres é crescente. “A gente chega aqui [na Assembleia] e vê essas mulheres falando. Muitas vezes elas não tinham coragem de se posicionar, ficavam tímidas, só olhando”, relembrou.

As coordenadorias regionais da Foirn, todas com suas associações, são: Nadzoeri (Associação Baniwa e Koripaco); Diawi´i (Coordenação das Organizações Indígenas do Tiquié, Baixo Uaupés e Afluentes); Coidi (Coordenadoria das Organizações Indígenas do Distrito de Iauaretê), Caiarnx (Coordenadoria das Associações Indígenas do Alto Rio Negro e Xié) e Caimbrn (Coordenadoria das Associações Indígenas do Médio e Baixo Rio Negro).

Integrante da delegação da Caiarnx, Belmira Melgueiro, da etnia Baré, reforçou a importância da Assembleia. “Muitas mulheres estão participando pela primeira vez. Eu vim para ajudar no fortalecimento do movimento. As mulheres da base enfrentam muitas dificuldades e às vezes têm medo de se expressar e buscar seus direitos”, disse. Ela concorreu à coordenação do Dmirn.

Presidente da Associação das Mulheres Indígenas do Distrito de Iauaretê (Amidi), Margarida Sodré Maia (Tukano) também concorreu ao Dmirn, mas pela Coidi. Ela acredita que o movimento das mulheres está se fortalecendo na região de Iauaretê, onde vivem diversas etnias, como Tukano, Tariano, Piratapuia, Kubeu, Desano, Wanano e Hupda.

Laura Almeida, da etnia Tariana, da Nadzoeri – Associação Baniwa e Koripako, informou que o grupo viajou dois dias para participar do encontro. A embarcação parou em alguns pontos para pegar mais mulheres e seus artesanatos. “Queremos fortalecer o movimento na região inteira, com mais associações”, afirmou Maria do Rosário Piloto Martins, a Dadá Baniwa, que concorreu pela Nadzoeri.

Outra concorrente foi Larissa Ye´padiho Mota Duarte, da Diawi´i. “As mulheres indígenas precisam conhecer seus direitos para se fortalecerem”, disse ela, que é de Taracuá. Luziane Celso de Melo, da etnia Baré, é uma das delegadas da Caimbrn, que não indicou candidata na assembleia eletiva. Ela é vice-presidente da Associação das Mulheres Indígenas de Barcelos (Asiba), que foi reativada recentemente. “Buscamos o fortalecimento inclusive por meio da venda de artesanato”.

A Yanomami Ana Lúcia Paixão Vilela também integrou o grupo da Caimbrn. Secretária da Kumirayoma – Associação das Mulheres Yanomami, ela aponta que uma das reivindicações das indígenas das comunidades como Maturacá, Mafi, Nazaré, Cachoeirinha e Inambu é melhorar o escoamento do artesanato. Dessa região até São Gabriel, é necessário viajar cerca de seis horas de barco e ainda atravessar a rodovia 307, que está em péssimas condições.

Eleição

Venceram as eleições para comandar o departamento, de 2021 a 2024, Maria do Rosário Piloto Martins, a Dadá Baniwa, que concorreu pela Nadzoeri, e Larissa Duarte, da etnia Tukano, indicada pela Diawi’i.

FOTO: Ray Baniwa

Dadá Baniwa tem mestrado em Linguística e línguas indígenas pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro, é fluente em Baniwa e disse que quer atuar em colaboração com a diretoria e coordenadorias da Foirn, pensando em todos as mulheres do Rio Negro. Larissa informou que sempre conviveu com o movimento indígena, lembrando que seu pai, Sebastião Duarte, participou da criação da Foirn. “Sou mãe, mulher, artesã, trabalho na roça e sei representar as pessoas”, disse. Ela fala a língua Tukano.

 

No total, 55 mulheres votaram, sendo 10 de cada coordenadoria regional da Foirn e cinco da Associação dos Artesãos Indígenas de São Gabriel da Cachoeira (Assai), representando a sede.
Dadá Baniwa recebeu 23 votos, enquanto Larissa ficou com 11. Margarida Maia, da etnia Tukano, e Belmira Melgaço, Baré, tiveram 10 votos cada uma, sendo registrado um voto nulo.

A abertura da VIII Assembleia eletiva contou com a presença do presidente da Foirn, Marivelton Barroso, da etnia Baré, e da diretora executiva da federação, Almerinda Ramos, da etnia Tariana.

Carta-manifesto

Um dos pontos altos da Assembleia Eletiva de 2020 foi o lançamento da carta-manifesto cobrando um sistema de segurança que, de fato, proteja as mulheres indígenas e resguarde seus direitos. No documento, as mulheres exigem uma delegada mulher em São Gabriel da Cachoeira, a criação de uma Defensoria Pública coordenada por mulher e, ainda, uma Secretaria Especializada da Mulher no município, para facilitar o acesso ao sistema de Justiça e garantir a proteção ao direito das mulheres. O documento será encaminhado às autoridades de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos.

Atualmente, a titular da Polícia Civil em São Gabriel da Cachoeira é a delegada Grace Jardim. Ela estruturou uma equipe feminina e vem atuando para melhorar o atendimento às mulheres. Entretanto, a policial só fica na cidade até o final do ano.

Ela participou da Assembleia Eletiva e explicou às mulheres da necessidade de denunciarem os casos de violência, apesar de todas as dificuldades. Ela informou que em São Gabriel há uma alta subnotificação desse tipo de crime, o que dá a falsa sensação de que a violência contra a mulher não é alta. Com isso, o município não recebe recursos para melhorar a estrutura de segurança — as verbas são encaminhadas de acordo com os registros de crimes.

Grace reconhece que as pessoas nas comunidades enfrentam maiores dificuldades para fazer denúncias, mas sugeriu que as coordenadorias discutam a criação de um meio de comunicação, com apoio das associações e Foirn, para que os casos de violência cheguem até a Polícia Civil. Segundo ela, uma necessidade da delegacia é a criação de um abrigo para mulheres, com serviço de psicologia e assistência social.

Advogada do Instituto Socioambiental, Renata Vieira acompanhou a assembleia e o processo eleitoral. Ela também reforçou a importância das denúncias de violência contra as mulheres. “Vocês podem ser porta-vozes em suas comunidades”, disse. Na abertura do evento, ela falou sobre a abrangência da luta da mulher indígena. “A luta da mulher indígena não é uma luta por um direito que é só dela. A luta da mulher indígena é uma luta pelo território, pelos filhos, contra o alcoolismo, contra o suicídio. Pelo direito à saúde, à vida, à educação, transmissão do conhecimento. É ela quem ensina a língua ao filho. A luta da mulher indígena é de todos”, pontuou.

Uma das ações do DMIRN durante a pandemia foi o lançamento da cartilha “Violência Doméstica e Violência sexual em tempos de pandemia: rede de apoio e denúncias: você não está sozinha”, desenvolvida em conjunto com ISA e a Faculdade de Saúde da Universidade de São Paulo (USP). Elisângela Baré explica que em março seria feita uma audiência pública sobre o tema, mas foi cancelada. “É um problema que sempre existiu, mas que agravou com a pandemia”.

Covid-19

Durante o encontro, as mulheres contaram sua experiência na pandemia, tanto em território indígena como em São Gabriel da Cachoeira. Representantes das cinco coordenadorias regionais levaram as plantas que utilizaram para combater a doença e falaram das práticas tradicionais, como benzimentos e defumações. Algumas das apresentações foram feitas em língua indígena, como Baniwa e Tukano.

Durante a sua exposição, Margarida Sodré, presidente da AMIDI, falou sobre a necessidade de os povos indígenas patentearem esses medicamentos. “Queremos a união das associações e o apoio do Departamento de Mulheres para buscar essa patente, pois do contrário vão levar nosso conhecimento”, disse.

As indígenas relatam que no território a maioria das pessoas contraiu a Covid-19 e se tratou usando remédios caseiros. A professora e liderança Enegilda Gomes Vasconcelos, de Taracuá, resume essa situação. “A Covid-19 deu foi em massa. As pessoas pegaram ser perceber que era essa doença. Todo mundo achou que estava gripado. Depois veio a equipe de saúde, fez o teste e comprovou que todo mundo teve a Covid-19. Agora temos algumas pessoas com sequela”, lamentou. Em Taracuá, assim como em todo o Rio Negro, os indígenas utilizaram as práticas tradicionais. Segundo ela, o carajiru utilizado nas pinturas é uma das formas de proteção. “Para nós é tão valioso quanto o dinheiro para o homem branco”, definiu.

Geração de renda

O fortalecimento das mulheres por meio da geração da renda também foi debatido no encontro. Gerente da loja de artesanatos indígenas Wariró, Luciane Mendes de Lima, explicou que a unidade vem passando por reestruturação, com organização de cadastro de artesãos e fortalecimento do diálogo com os fornecedores que vêm das comunidades. Para incrementar as vendas, a equipe vem estruturando um catálogo com as peças, suas características, preços e disponibilidade. Também são feitos contatos constantes com os consumidores em várias partes do país. A boa notícia é que, mesmo durante a pandemia, a Wariró ampliou as suas vendas.

Paralelamente ao evento, houve uma feira de artesanato indígena. “As mulheres trouxeram artesanato e fizeram feira. Esse é o diferencial das mulheres. Quando elas vêm para o evento, querem retornar com algumas coisas para suas casas. ‘Eu trouxe isso para meu filho, para minha casa, o que a gente não tem nas aldeias’. Esse é o diferencial das associações mulheres. Elas vêm participar da reunião, mas também mostrar a criatividade delas, o produto delas”, afirmou Elizângela da Silva.

Lute como uma indígena

Um dos destaques da abertura foi o lançamento da camiseta “Lute como uma Indígena”, com o diferencial de trazer esse escrito em quatro línguas indígenas cooficiais do município – Nheengatu, Baniwa, Tukano e Yanomami -, além do português. A iniciativa partiu da doutoranda da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Francineia Fontes, a Fran Baniwa, e teve apoio do DMIRN/FOIRN, coletivo Peita e União Amazônia Viva.

Em Nheengatu, essa frase é traduzida como Reyumukiriba kuyã bare yawé. Na língua Yanomami, a tradução é Suwe míxia hiakawe totihiwe. Já em Tukano, a frase se transforma em Dahse numia weronoh wahkûtuhtua da´rana. Em Baniwa, o texto é Khedzaako phia kadzoaha iinaro baniwa ttadoa dzo.

Ainda na abertura, Cláudia Wanano, da Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas, explicou o trabalho do coletivo de comunicação que também atuou durante a pandemia, produzindo e divulgando material informativo, inclusive em língua indígena. O grupo fez a cobertura do evento.

Apoiaram a realização do encontro o ISA, Campanha “Rio Negro, Nós Cuidamos”, Embaixada da Noruega, União Amazônia Viva, Mosaky, Aliança pelo Clima e Norwegian Rainforest Foundation.

*Com informações do Portal Socioambiental

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