A cozinha na sede da Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (Foirn), em São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas, foi tomada por uma presença especial no final de fevereiro. A conhecedora tradicional Jacinta Sampaio, de 55 anos, indígena da etnia Tukano, passou cerca de uma semana preparando chás com plantas do quintal e da floresta utilizados no combate à Covid-19. Desde o início da pandemia, os indígenas da região do Rio Negro recorreram aos seus conhecimentos e práticas para o enfrentamento da doença.
Dona Jacinta é moradora da comunidade Balaio, na BR-307, onde já vinha tratando os moradores. “Vi que a Covid-19 estava avançando somente na cidade. Na comunidade, muita gente pegou, mas ninguém morreu”, contou. Ela então decidiu distribuir os chás em São Gabriel. “Vim para doar o chá, trazer ajuda para não deixar morrer”, completou.
Dona Jacinta ficou muito abalada com a morte do diretor da Foirn, Isaías Fontes, da etnia Baniwa, em 1º de fevereiro. Com isso, fez questão de distribuir a bebida também entre os funcionários da federação.
São Gabriel da Cachoeira foi fortemente atingida pela segunda onda da pandemia da Covid-19, com o agravamento da crise sanitária em Manaus e a circulação de novas variantes. Conforme boletim epidemiológico da Secretaria Municipal de Saúde (Semsa), a cidade registrou 2.009 casos e 35 mortes por Covid-19 nos dois primeiros meses de 2021 (confira outros números abaixo).
A Foirn apoiou a ação de Dona Jacinta por meio da Campanha Rio Negro, Nós Cuidamos, desenvolvida com o Instituto Socioambiental (ISA). Foram distribuídos cerca de 120 litros de chás, usados também no tratamento de sequelas deixadas pela Covid-19. Erlange Figueiredo, moradora da cidade, conta que já se curou da doença, mas ainda se sente cansada. “Já tomei todos os remédios que o médico passou. Também venho tomando chás indígenas”, disse.
Na hora do preparo, Dona Jacinta se cerca de cuidados. Usando avental, touca e máscara, ela pega as panelas e acende o fogo — tudo com ajuda da cunhada, Kátia Vasconcelos, que também saiu do Balaio para auxiliar no tratamento e na prevenção à pandemia. Os ingredientes vêm do quintal ou da floresta. A única exceção é o açúcar, utilizado para dar cor e diminuir o amargor da bebida.
No chá são utilizados mangarataia — como o gengibre é conhecido na região —, limão, jambu, casca da árvore sucuba, casca da árvore carapanaúba e ainda, um pouquinho de fel de paca, ou a bile do animal. Esse último ingrediente é guardado como uma joia preciosa em um potinho, que Dona Jacinta carrega para todo lado com muito cuidado.
Ela explica que, para consegui-lo, é preciso primeiro pedir a um caçador para retirar e guardar a “bolsinha” de bile da paca. Depois, ela é moqueada, ou seja, é amarrada, pendurada e defumada até endurecer — tornando-se um remédio para limpeza do fígado.
Somente quem tem conhecimento prévio deve preparar as misturas. No caso do fel de paca, por exemplo, é utilizado uma quantidade mínima para não fazer mal. Dona Jacinta prepara o chá mais leve, pois já conhece as substâncias e sabe que algumas delas, em quantidades inapropriadas, podem ter efeitos colaterais.
Enquanto Kátia rala a mangarataia e corta os limões, Dona Jacinta vai para o fogão e, em uma panela grande, queima o açúcar. Depois, despeja a água e os ingredientes. Após levantar fervura, a mistura descansa na panela tampada. Ao final do processo, Dona Jacinta a divide em garrafas que, se possível, devem ser guardadas na geladeira.
O remédio promove a limpeza do organismo, a cura de feridas internas e o fortalecimento do sistema imunológico e deve ser tomado quente, de duas a três vezes ao dia, em um copo pequeno.
Enquanto espera o chá ferver, Dona Jacinta conta como foi a experiência da comunidade Balaio no combate à Covid-19. Segundo ela, no início da crise, os indígenas ficaram em suas casas, sem participar da rotina de dividir refeições ou receber visitas. Foram cerca de três meses bastante isolados. Nesse período, não tiveram assistência ou informação adequadas. Somente uma equipe do Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (Dsei-ARN) os visitou na primeira fase da pandemia para fazer testes. Algumas pessoas testaram positivo, indicando que a doença já havia chegado até lá, mesmo com o isolamento.
Ela explica que, entre os indígenas, causa grande temor o tratamento de casos graves da Covid-19, com a intubação. Sem perspectiva de cura, eles buscaram se proteger utilizando seus próprios conhecimentos. “Por isso, a Covid não encosta em nós, não ataca muito. Ataca pouco. Viemos trazer ajuda para não morrer. Esse foi meu pensamento”, afirmou Dona Jacinta. Segundo ela, a Covid-19 acabou resgatando e fortalecendo os conhecimentos tradicionais. “Se não fosse a pandemia, poderíamos ter perdido alguns deles”, contou.
Kátia Vasconcelos acredita que viver na floresta também ajuda na recuperação. “Lá na comunidade não tem água gelada, não tem ar condicionado, ventilador. Essas coisas fazem mal para quem está com Covid-19. E ficar comendo frango e arroz aqui na cidade, também não é bom. Lá a alimentação é melhor, mais tradicional”, defendeu.
Nessa segunda fase, o combate à pandemia tem o reforço da vacinação. No território indígena em São Gabriel, a imunização teve início em 20 de janeiro, um dia após as doses chegarem ao município. Conforme levantamento da Secretaria Municipal de Saúde (Semsa), até o final de fevereiro ao menos 8.935 pessoas já tinham sido vacinadas, sendo que 8.577 receberam a 1ª dose e 358 tomaram a segunda dose. Entre os imunizados, 7.420 são indígenas aldeados que tomaram a primeira dose. Na comunidade do Balaio, onde vivem Dona Jacinta e Érika, a vacinação já teve início.
Rio Negro, nós cuidamos
Durante toda a pandemia, as indígenas atuaram na linha de frente em ações solidárias de proteção aos povos tradicionais. O Departamento de Mulheres Indígenas da Foirn (Dmirn/Foirn) é quem comanda a Campanha Rio Negro, Nós Cuidamos. A ação possibilita a entrega de alimentos e produtos de higiene em comunidades de todas as calhas do Rio Negro, assim como ações de comunicação, com carros de som, produção de informativos e cartilhas sobre a importância das medidas preventivas e da vacinação.
Além disso, as mulheres confeccionam máscaras para doação. As responsáveis são Maria do Carmo Martins Piloto, de 71 anos, da etnia Baniwa, Lucila Mendes de Lima, da etnia Tariano, Vanderleia Cardoso, Piratapuia e Carmem Figueiredo Alves, Wanano. O objetivo é confeccionar oito mil máscaras, sendo que parte já foi distribuída a idosos durante a campanha de vacinação contra a Covid-19 ocorrida em 20 de fevereiro na cidade.
Cenário atual
Em São Gabriel da Cachoeira foram registrados, até 28 de fevereiro, 7.038 casos da Covid-19 e 94 mortes. Em comunidades atendidas pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei-ARN) em São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, foram registrados 2.204 casos e 21 mortes até 26 de fevereiro, conforme Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Em comunidades atendidas pelo Dsei Yanomami no Amazonas e Roraima são 1.448 casos e 10 óbitos.
Coordenadora do projeto Médicos Sem Fronteiras (MSF) em São Gabriel da Cachoeira, Caroline Debrabant avalia que no momento a pandemia na cidade caminha para a estabilização, mas num nível elevado, o que requer vigilância constante. A organização humanitária MSF manteve equipe em São Gabriel desde dezembro, sendo que encerrou suas atividades na cidade em 28 de fevereiro.
*As informações são do Instituto Socioambiental (Isa).