Indícios de crime na compra de 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin feita pelo Ministério da Saúde foram identificados pelo Ministério Público Federal (MPF). O órgão solicitou que o caso seja investigado na esfera criminal, já que o caso tramitava em esfera cível.
Antes, a apuração ocorria no curso de um inquérito civil público aberto pela Procuradoria da República no Distrito Federal. O inquérito se destina a averiguar a prática de improbidade administrativa.
Agora, com o surgimento de indícios de crime, a parte relacionada ao contrato para a compra da Covaxin foi enviada ao 11º Ofício de Combate ao Crime e à Improbidade Administrativa.
O envio dos documentos para a condução de uma investigação na esfera de combate à corrupção foi feito no último dia 16, em despacho assinado pela procuradora Luciana Loureiro, que conduz o inquérito civil público.
Na esfera cível, o principal foco da investigação é a distribuição de cloroquina – um medicamento sem eficácia para Covid-19- pelo governo Bolsonaro na pandemia.
INVESTIGAÇÃO
Após o avanço das investigações sobre o contrato com a Precisa, a Procuradoria elencou indícios de crime que precisam ser investigados.
Um dos elementos usados no inquérito foi o depoimento revelado pelo jornal Folha de S.Paulo de um servidor do Ministério da Saúde que apontou pressão atípica da cúpula da pasta para tentar liberar a importação da Covaxin.
Um dos responsáveis pela pressão, segundo o depoimento, foi o tenente-coronel Alex Lial Marinho, que integrava o principal grupo auxiliar do general Eduardo Pazuello em sua gestão no Ministério da Saúde.
Ele foi coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos para Saúde e acabou demitido do cargo pelo atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, no último dia 8.
Segundo o despacho do MPF, não há justificativa, a princípio, para a “temeridade do risco” assumido pelo Ministério da Saúde com a contratação relacionada à Covaxin, “a não ser para atender a interesses divorciados do interesse público”.
“A omissão de atitudes corretivas da execução do contrato, somada ao histórico de irregularidades que pesa sobre os sócios da empresa Precisa e ao preço elevado pago pelas doses contratadas, em comparação com as demais, torna a situação carecedora de apuração aprofundada, sob duplo aspecto, cível e criminal”, afirmou a procuradora Loureiro no despacho.
HIPÓTESE DE SUPERFATURAMENTO
A Covaxin é fabricada pela indiana Bharat Biotech e representada no Brasil pela Precisa Medicamentos. É a Precisa que assina o contrato com o Ministério da Saúde para o fornecimento de 20 milhões de doses, a um preço individual de US$ 15. Nenhuma outra vacina comprada pela pasta tem custo tão elevado.
O preço elevado é uma das razões para a necessidade de investigação criminal, segundo o MPF. O valor é superior aos da negociação de outras vacinas no mercado internacional, como a Pfizer, conforme o despacho da Procuradoria. No Brasil, a dose da Pfizer saiu por US$ 10.
O MPF aponta ainda uma quebra de cláusulas contratuais. O contrato entre Saúde e Precisa prevê que os 20 milhões de doses deveriam ser entregues em até 70 dias após a assinatura do documento, que ocorreu em 25 de fevereiro. Nenhuma dose chegou ao Brasil até agora, conforme a reportagem do Diário do Nordeste.
“Expirados os 70 dias de prazo para a execução escalonada do contrato, nenhum dos lotes de 4 milhões de doses fora entregue pela contratada Precisa”, cita o despacho do MPF.
A agência, em 31 de março, havia negado pedido de importação formulado pelo Ministério da Saúde, diante da falta de documentos básicos por parte da empresa.
“Embora se trate a situação de nítida hipótese de descumprimento da avença, o Ministério da Saúde vem concedendo oportunidades à empresa de sanar as irregularidades perante a Anvisa, elastecendo os prazos de entrega da vacina, mesmo sabendo que é incerta a entrega das doses contratadas e, por enquanto, não autorizada sua distribuição em larga escala”, afirmou a Procuradoria no DF.
SEM PREVISÃO
A finalidade prevista em contrato -distribuir doses contratadas em ampla escala, dentro do PNI (Programa Nacional de Imunizações)– não tem previsão para ser alcançada, conforme o MPF, “o que deveria reclamar do gestor público imediata ação corretiva”.
Outro ponto que justifica o aprofundamento das investigações, na esfera criminal, é o histórico de atuação da Global Gestão em Saúde. A empresa tem como sócio o mesmo dono da Precisa Medicamentos, Francisco Emerson Maximiano.
Em dezembro de 2018, o MPF moveu uma ação de improbidade administrativa contra o então ministro da Saúde, Ricardo Barros, e contra a Global por ter havido pagamentos antecipados de R$ 20 milhões à empresa por medicamentos não entregues.
“Houve prejuízos a centenas de pacientes dependentes de medicamentos de alto custo, e prejuízo de mais de R$ 20 milhões ao erário, ao que consta ainda não ressarcidos”, afirmou Loureiro no despacho. “O fato desencadeou uma ação de improbidade administrativa em face do então ministro da Saúde e vários outros servidores, estando em curso inquérito policial sobre os mesmos fatos.”
Maximiano foi convocado pela CPI da Covid. Seu depoimento está marcado para quarta-feira (23). Ele também teve os sigilos quebrados pela CPI.
A Precisa afirmou que “jamais promoveu qualquer tipo de pressão e não contou com vantagens durante esse processo”. Disse ainda que o contato com o servidor foi “de ordem técnica, para a confirmação de recebimento de documentação, seguindo o protocolo do ministério.”
O Ministério da Saúde afirmou, em nota, que respeita a autonomia da Anvisa e que não faz pressão para aprovação de vacinas.
O deputado e ex-ministro Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo Bolsonaro na Câmara, disse em nota que houve “inexecução contratual” em relação à Global.
“Foram adotadas todas as providências pelo Ministério da Saúde para penalização da empresa e para o ressarcimento ao erário. Não houve favorecimento ou qualquer ato de improbidade”, afirmou.
Na noite de sexta (18), a reportagem questionou o centro de comunicação social do Exército sobre a citação ao tenente-coronel Marinho, mas não houve resposta.