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Meninas brancas de até dois anos ainda são perfil ‘ideal’ na fila de adoção do País, diz diretor de abrigo

Com isso, meninos pardos com idade superior acabam, infelizmente, sendo esquecidos por parte dos pais que 'desejam' adotar uma criança (Ricardo Oliveira/ Revista Cenarium)

*Da Revista Cenarium

Embora o Amazonas seja um Estado onde a maioria da população possui traços indígenas e pardos, a exigência das famílias em relação ao perfil da criança ‘ideal’, na fila da adoção, ainda é alta. Segundo o diretor de um abrigo localizado em Manaus, o Abrigo Nacer, Clesley Rodrigues, as famílias procuram meninas, brancas, de zero a dois anos de idade.

“As pessoas ainda preferem crianças com tom de pele claro e isso não é uma especificidade do Amazonas. Não temos distinção de cor no Amazonas, mas quando analisamos o perfil das famílias adotantes no Cadastro Nacional de Adoção, essa exigência é visível no País”, afirma Clesley.

Durante os cinco anos de funcionamento do abrigo, Clesley destaca que até hoje, das 140 crianças e adolescentes que passaram pela instituição, 115 foram reinseridas nas famílias de origem e apenas seis delas foram adotadas por famílias do Amazonas e uma foi para o Rio Grande do Sul. “Me sinto honrado de contribuir com o desenvolvimento e acompanhamento deles e, principalmente de colaborar para uma conclusão feliz e a mais correta para essas crianças e adolescentes”.

Clesley revela ainda que o abrigo é um braço do Judiciário e recebe qualquer criança ou adolescente em vulnerabilidade e tenham seus direitos violados como, vítimas de abandona, violência sexual, abandono de incapaz, principalmente as abandonadas nas maternidades, oriundas de todos os municípios do Amazonas.

“As crianças geralmente são encaminhadas pela Justiça para o abrigo e elas chegam bem fragilizadas e desesperançadas. Já tivemos crianças dos municípios de Silves, Parintins e Amaturá. Esse último, foram duas irmãs de quatro e cinco anos abusadas pelo pai. As crianças, geralmente, permanecem no abrigo de um a dois anos, prazo que a Justiça leva para definir o destino delas, ou seja, se elas retornam para família de origem ou se seguirão para adoção. Em 2019, o abrigo teve dois casos de adoção tardia, uma menina de nove anos e outra de 12”, salienta Clesley Rodrigues.

Crianças do Abrigo Nacer esperam por adoção. (Divulgação)

O Cadastro de Adoção do Amazonas tem, hoje, 161 famílias habilitadas e 37 crianças e adolescentes elegíveis para adoção em todo o Estado. Só no abrigo Nacer, são oito crianças elegíveis para adoção, porém, seis delas estão fora do perfil ideal, que são de zero a dois anos. As crianças que estão fora desse perfil, ficam no abrigo até serem adotadas, caso contrário, o abrigo trabalha a autonomia delas para, posteriormente, inseri-las na sociedade.

“Não é o processo de adoção que é moroso, é o perfil de criança desejado é que não tem. As famílias que estão aptas a adotar, querem sim ser pais. Mas, elas querem ser pais de bebês. Elas têm um preconceito de passar pelo desafio de educar uma criança a chamá-la de pai e mãe. É muito mais fácil, pegar um bebê e criá-lo desde pequeno e ensiná-lo a chamá-los de papai, de mamãe. Quando se adota uma criança um pouco mais velhas, ela já sabe que eles não são os pais biológicos, elas já sofreram traumas e serão inseridas em uma nova família e vai ter que se adaptar e muitas das vezes esses pais não aceitam serem chamados de ‘tio’, ‘tia’, existe esse preconceito velado. Este ano saiu um bebê aqui do Nacer, onde os pais estavam há cinco anos na fila esperando”, afirma Clesley Rodrigues.

Para a secretária-executiva da Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania do Estado do Amazonas (Sejusc-AM), Edmara Castro, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) trouxe muitos direitos para as crianças. Mas a burocracia em relação à adoção, atrapalha a aceleração desse trâmite e precisa de reforma urgente.

“Entendo que a criança não pode ser adotada por qualquer família, mas o sistema de Justiça e a burocratização não são favoráveis para que essa criança permaneça muito tempo nos abrigos. Há casos de crianças que alcançam a maioridade e simplesmente sai do abrigo sem perspectiva de vida. Faltou o legislador na época prevê esse tipo de situação e mecanismo para que esse processo fosse mais ágil. Hoje, no Amazonas, temos uma lista de adotantes três vezes maior do que a lista de crianças a serem adotadas”.

Edmara Castro diz ainda que esse processo demora bastante, e mesmo que essa criança ingresse no sistema de adoção recém-nascida, ela só vai conseguir ser adotada aos cinco ou seis anos de idade. Ou seja, faixa etária que a maioria das famílias não quer mais adotar. Fazendo uma análise crítica, Edmara acredita que esse seja o principal ponto do ECA que precisa de reforma urgente.

Números da adoção em Manaus

Segundo dados recentes, repassados à REVISTA CENARIUM, pela coordenadora da Infância e Juventude e titular do Juizado da Infância e Juventude Cível, juíza Rebeca Mendonça Lima, do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), em média, cerca 180 crianças e adolescentes de Manaus aguardam para serem adotados.

Por outro lado, a capital tem 161 pessoas dispostas a fazerem a adoção. Ainda segundo a magistrada, a média de maior faixa etária de crianças nos abrigos está entre 10 a 12 anos. A partir dessa idade, conforme o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no Brasil, apenas 2,7% dos pretendentes aceitar adotar acima dessa faixa etária.

“É um dia que é importante para se enfatizar o que é a adoção, para que as pessoas saibam o que é o processo, saibam que não é um ato de caridade e sim de amor, é para quem realmente deseja ter uma família, quem deseja ser mãe ou pai e sabendo que a adoção é irreversível. A criança só não nasceu na barriga da pessoa, mas a partir do momento em que ela é adotada, ela passa a ser filha tal qual ela fosse biológica”, enfatizou.

“É importante que as pessoas abram um pouco a sua mente, no sentido de que tem ali outra criança que você pode muito bem ter afinidade com ela, não necessariamente só com o bebê. Temos dois projetos que funcionam muito bem, o “Colhendo Vidas”, voltado para bebês, e o “Encontrar Alguém”, que ele se destina exatamente a essas crianças, desse público mais velho. Com ele, percebemos que muitas pessoas nunca tinham pensado nessas outras crianças mais velhas e elas começaram a conhecer as histórias, começaram a se interessar e começaram a nos procurar”, pontuou a juíza.

Especialistas alertam que mesmo após 30 anos, ECA ainda precisa ser aprimorado

Ocorrências que envolvem abuso sexual, maus-tratos, trabalho infantil e abandono de crianças e adolescentes ainda são tratadas com descaso, na maioria das vezes, no Brasil. E nesta segunda-feira, 13, data em que se comemora os 30 anos desde a promulgação do ECA, a REVISTA CENARIUM ouviu especialistas na área de direitos da infância e adolescência para saber quais os principais desafios enfrentados até hoje no que diz respeito aos direitos estabelecidos em lei para proteger essas vítimas.

Desde que o ECA foi criado, em 1990, durante o governo de Fernando Collor, o Brasil já teve sete presidentes da República. Algumas alterações foram feitas ao longo dessas três décadas, no entanto, o documento atual mantém contornos muito semelhantes aos do original, o que indica a capacidade do Estatuto de se amoldar a governos com diferentes linhas ideológicas. Porém, ajustes precisam ser feitos para que o Estatuto acompanhe os avanços da sociedade.

De acordo com dados da Fundação Abrinq, existem, atualmente, 5.419 projetos de lei tramitando no Congresso que tratam de crianças e adolescentes. Quase 2.500 dessas propostas são pautadas pela proteção dos menores de idade. Entre elas, 712 abordam a violência contra os jovens. Boa parte das discussões entre os parlamentares são geradas por propostas legislativas com caráter punitivo aos menores infratores.

Em relação a educação, são quase 1.400 projetos de lei tramitando no Congresso. Entre os principais temas estão o currículo escolar e a violência nas escolas. A taxa de escolarização também é pauta das propostas apresentadas pelos parlamentares: de acordo com dados de 2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 10% dos adolescentes entre 15 e 17 anos não frequentam a escola.

Quando o Congresso Nacional aprovou o ECA, 24% da população de quatro a 17 anos estavam fora da escola. Praticamente um em cada quatro. Os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2017, indicam que esse percentual caiu para 4%. Apesar do declínio, muito ainda precisar ser feito.

De 2017 até abril de 2020, 6.093 crianças e adolescentes foram retirados de condições irregulares de trabalho em 2.438 ações de fiscalização contra o trabalho infantil em todo país.

Segundo os últimos números do IBGE, com base na Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD/2016), 1,8 milhão crianças e adolescentes, na faixa de cinco a 17 anos, estão trabalhando no Brasil, número que aumenta para 2,4 milhões considerando o trabalho para o próprio sustento. A pesquisa apontou ainda a existência de 190 mil crianças de cinco a 13 anos na condição de trabalho infantil.

A Constituição Federal e a legislação brasileira proíbem o trabalho noturno, perigoso ou insalubre, bem como o trabalho realizado em locais prejudiciais à formação, ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social a menores de 18 anos e de qualquer trabalho a menores de 16 anos – salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos, como premissa para proteger crianças e adolescentes. O Estatuto de Criança e do Adolescente (ECA) proíbe qualquer tipo de trabalho para menores de 14 anos.

Dados do Unicef

Segundo relatório sobre avanços e desafios das crianças brasileiras, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), divulgado em novembro de 2019, o Brasil alcançou conquistas importantes, mas ainda enfrenta problemas – antigos e novos –  ao longo desses 30 anos – para garantir todos os direitos a cada criança e adolescente, sem exceção.

O relatório aponta os principais avanços e desafios enfrentados por meninas e meninos brasileiros e conquistas importantes como, a redução da mortalidade infantil de 47,1 a cada mil nascidos vivos, em 1990, para 13,4 em 2017. Somente entre os anos 1996 e 2017, o país evitou a morte de 827 mil bebês. Não obstante, no mesmo período, aumentaram em grande escala a violência armada e os homicídios, que tiraram a vida de 191 mil meninas e meninos de 10 a 19 anos.

Na área de proteção à criança, ainda segundo o diagnóstico do Unicef, o Brasil melhorou em aspectos específicos como o registro de nascimento e a redução do trabalho infantil. Em 1990, apenas 64% das crianças eram registradas no seu primeiro ano de vida. Já em 2013, esse número passava dos 95%. Entre 1992 e 2015, o país evitou que 5,7 milhões de meninas e meninos de cinco a 17 anos estivessem em situação de trabalho infantil. O número de crianças de cinco a 17 anos afetadas pelo trabalho infantil diminuiu de 8,4 milhões em 1992 para 2,7 milhões em 2015.

Para a representante do Unicef no Brasil, Florence Bauer, o tratado mais ratificado da história, por 196 países, a Convenção sobre os Direitos da Criança, mudou a vida de meninas e meninos em todo o mundo.

“Graças à Convenção, crianças e adolescentes deixaram de ser considerados objetos de caridade, propriedades dos pais, ou “menores” em situação irregular. Em vez disso, passaram a ser reconhecidos, oficialmente, como sujeitos de direitos”, explica Bauer.

No Brasil, a Convenção inspirou o Artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990. Influenciado por esses três marcos legais, o país criou um Sistema de Garantia de Direitos inovador, ainda entre os mais avançados do mundo, baseado na ideia de proteção integral à criança e ao adolescente.

Ofélia Silva, chefe do escritório do Maranhão e coordenadora interina do Unicef na região Amazônica afirma que o ECA é um marco protetivo de direitos humanos de crianças e adolescentes, exemplar. Mas, não significa que a sociedade esteja perfeita simplesmente porque se criou uma lei.

“O Brasil tem realmente uma normativa maravilhosa, que é reconhecida globalmente, mas ainda tem uma jornada pela frente para preencher esse gap [lacuna] do que é normativa do que é cotidiano e a realidade de crianças e adolescentes”.

Quando questionada sobre estes 30 anos de estatuto, o Brasil já teve sete Presidentes da República, Ofélia Silva é enfática.

“Não existe uma ferramenta única que resolve todos os problemas. O desafio tremendo dessa realidade é exatamente esse, que às vezes precisamos parar, reunir forças, se inspirar mutuamente, criar redes integradas porque sozinho, não vai pra frente”, critica a representante do Unicef na região Amazônica.

 Trinta anos depois, milhões de meninas e meninos não têm acesso a todos seus direitos no Brasil. (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium) 

Desafios na Amazônia

Na área de proteção à criança, no entanto, o país ainda enfrenta grandes desafios. Em 30 anos, o Brasil viu crescer a violência armada em diversas cidades, e hoje está diante de um quadro alarmante de homicídios. A cada dia, 32 meninas e meninos de 10 a 19 anos são assassinados no país. Em 2017, foram 11,8 mil mortes, apontam dados do relatório do Unicef.

Os indicadores sociais mostram que as crianças na Amazônia têm maior risco de morrer antes de 1 ano de idade e de não completar o ensino fundamental. Além disso, a taxa de gravidez na adolescência é alta, e as meninas e os meninos na região estão vulneráveis às mais variadas formas de violência, incluindo o abuso, a exploração sexual, o trabalho infantil e o homicídio. Quando todas essas variáveis são avaliadas a partir de um recorte de raça e etnia, percebe-se que entre os grupos minoritários, como indígenas e quilombolas, o quadro é ainda mais grave.

“Reverter esse quadro é urgente. É preciso investir nos territórios mais vulneráveis, com políticas públicas de qualidade, voltadas a cada criança e cada adolescente, em especial os mais excluídos – oferecendo a eles um ambiente seguro em que possam desenvolver plenamente o seu potencial”, defende a representante do Unicef no Brasil.

A coordenadora interina do Unicef na região Amazônica, Ofélia Silva, disse que no caso específico da região Amazônia Legal há muitos desafios, entretanto, muitos particulares a realidade da Amazônia.

“Crianças indígenas, na Amazônia, afrodescendentes, especialmente, as de comunidades quilombolas, nas diferentes realidades dos Estados da Amazônia Legal, que por si só são realidades muito distintas, são aquelas que mais sofrem. Para se ter uma ideia, 30% das crianças de comunidades indígenas têm desnutrição crônica. Isso é uma realidade que o Brasil conseguiu começar a enfrentar nos anos 80, no entanto, ainda temos uma quantidade enorme de geração de brasileiros que têm problemas de desnutrição crônica. O que isso significa? baixíssimo acesso às condições de alimentação regular adequada e um dos maiores desafios imediatos de melhoria de qualidade de vida na Amazônia é o acesso a água”, analisa Ofélia Silva.

Crianças indígenas de acordo com dados do Unicef

Se grande parte das crianças e dos adolescentes na Amazônia vive em situação de alta vulnerabilidade, entre os indígenas o quadro é ainda mais grave. São situações que demandam urgente atenção e os desafios que os governos federal, estaduais e municipais têm que enfrentar são complexos. Do total da população autodeclarada indígena do país, 46,6% vivem na Amazônia Legal, representando 1,5% da população da região. O Estado de Roraima é o que apresenta o maior percentual de indígenas em relação à sua população total (11,2%). Nenhum outro grupo no país encontra-se em tamanha situação de desigualdade e iniquidade como estão os indígenas.

Hoje, o Brasil registra 14 óbitos de menores de 1 ano por 1 mil nascidos vivos. Entre os indígenas, na Amazônia, morrem aproximadamente 31,3 crianças menores de um ano para cada 1 mil nascidas vivas. Esse padrão de desigualdade permeia todo o ciclo de vida dessas crianças e desses adolescentes. A partir dos dados e informações disponíveis, é possível dizer que essa parcela da população apresenta os mais baixos índices de acesso ao pré-natal, a mais baixa cobertura vacinal, muitos estão fora da escola ou em atraso escolar e, sobretudo nas zonas urbanas, muitos são expostos a altos índices.

“Precisamos construir realidade do cotidiano que expresse esse marco legal do contrário, estamos ceifando vidas pelo fato delas serem negras, indígenas, pobres, moradores da periferia o que é muito dramático em termos de realidade quando olhamos para os números”, alerta a representante do Unicef na região Amazônica.

Pandemia do novo Coronavírus

De acordo com a coordenadora interina do Unicef na região Amazônica, Ofélia Silva, como fazer o controle na disseminação do novo Coronavírus, na região Amazônica, se não há acesso a água de qualidade nas torneiras das periferias da cidades que compõem a Amazônia Legal?

“Medidas protetivas contra Covid-19 incluem lavar as mãos com água e sabão, além, de ser a melhor forma de enfrentar a doença é uma rotina intensificada de lavagem das mãos, do corpo, do ambiente domiciliar, dos alimentos. Como vamos falar isso para uma comunidade dessa dos Estados da Amazônia, onde as pessoas não têm acesso a água limpa ou na torneira? Tem áreas em que a distribuição de água não chega para todo mundo ou tem poço, mas não tem eletricidade então são inúmeros desafios”, pontuou Ofélia Silva.

A pobreza, no Brasil, afeta de forma mais expressiva as crianças, que se concentram mais nos 30% mais pobres da população. Em especial, crianças e adolescentes negros e indígenas (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Falhas são apontadas

Os especialistas ouvidos nesta reportagem apontam avanços, mas também, falhas na implementação dos direitos que o documento prevê. Apesar de haver necessidade de alterações substanciais em seu conteúdo, mas celebram sua estabilidade ao longo dos anos.

Segundo Edmara Castro, secretária executiva da Sejusc-AM, o ECA trouxe uma inovação sobre os direitos das crianças e adolescentes como prioridade absoluta, mas no Amazonas, ainda enfrenta muitas dificuldades.

“No Estado do Amazonas, temos uma dificuldade muito grande de efetivar os direitos previstos no ECA, primeiro pelas questões culturais e segundo, pela dimensão do Amazonas, que é muito grande, o que dificulta muitas vezes de levarmos esses direitos para os interiores, que na maioria das vezes são precários. Em relação questão cultural, ainda é muito enraizada a exploração sexual e aos abusos de crianças e adolescentes, que infelizmente são muito comum na região amazônica”, critica a secretária executiva da Sejusc.

“O ECA traz a proteção integral dessa criança, o que antigamente, não era prioridade absoluta. Antigamente, criança e adolescentes não tinham direitos até que eles atingissem a maioridade. Isso explica o porque do alto índice de mortalidade infantil na época, já que as crianças não eram tratadas como são na atualidade”, lembra Edmara Castro.

Sobre os principais desafios do ECA, Edmara Castro é enfática. “Tudo que a criança vivencia na infância vai gerar efeito no futuro dela. Infelizmente, como acontece na cultura indígena, a questão do incesto, dos abusos está enraizado na cultura do povo não só do Brasil, mas também em outros países da América do Sul que compõem a Amazônia. No entanto, precisamos falar disso, porque não é natural ou normal. São crimes e as maiores vítimas são as crianças”.

Para a promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio Operacional às Promotorias da Infância de Juventude do Ministério Público do Amazonas, Romina Carvalho, os desafios do ECA no Brasil e, principalmente na Amazônia Legal precisam de atenção.

“Apesar de terem havido muitos avanços para a infância e a adolescência no Brasil nesse período, ainda são muitos os desafios a serem enfrentados. Na Amazônia, por exemplo, o enfrentamento da situação do trabalho infantil, da exploração sexual, do tráfico de drogas e agora, das crianças refugiadas em situação de rua, são tratados como um dos maiores desafios a serem combatidos com políticas públicas eficientes, para tratar crianças e adolescentes como prioridade absoluta”, cita Romina Carvalho.

A promotora destaca ainda que o Ministério Público, tem responsabilidade diferenciada no trato desses direitos, porque é indicado na Constituição Federal e no Estatuto como detentor de um papel proativo, instaurando inquérito civil, recomendações, ações civis públicas que garantam que as promessas saiam da lei e cheguem a vida das crianças e adolescentes.

Dificuldade que fortalece

O defensor público, Mário Wu, responsável há 15 anos pela Defensoria Pública da Infância e Juventude Cível do Estado do Amazonas, sentiu na pele o significado da convivência familiar negligenciada. Mário Wu passou parte de sua infância na Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), na cidade do Rio de Janeiro. Segundo ele, foi um período difícil, mas o fortaleceu em lutar pela causa.

“Essa tem sido minha vocação, há 15 anos, voltada para os direitos da criança e do adolescente. Isso tem uma explicação: na minha infância eu tive meu direito à convivência familiar negligenciado, o que me levou a passar um período na Funabem, no Rio de Janeiro. Foi um período difícil da minha vida. Entretanto, consegui passar por todos os desafios, chegar a esse momento e poder trabalhar em favor dos menos favorecidos e mais vulneráveis que são as crianças e adolescentes”.

Segundo Wu, durante os 30 anos, o Estatuto sofreu 34 alterações. Uma mudança ocorrida em 2017, a Lei da Primeira Infância, que prevê o direito à creche, ainda depende de políticas sérias e com orçamento que garantam esse direito”.

Mario Wu ressalta ainda um outro avanço do ECA, a possibilidade da criança vítima de negligência, de abuso ou de maus tratos, ser cuidada por uma família acolhedora. “Há famílias capacitadas que possam prestar suporte emocional a elas. Caso isso não ocorra, a alternativa é enviá-la para o abrigo. O ECA prevê que a União, o Estado e o Município contribuam para as despesas dessas famílias acolhedoras”, conclui.

A coordenadora do Instituto de Assistência à Criança e ao Adolescente Santo Antônio (Iacas), Amanda Ferreira, explicou que entre as ações do Iacas, estão a contribuição para o fortalecimento da Rede de Defesa de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes para o enfrentamento à violência sexual, o acompanhamento dos casos emblemáticos e a elaboração e divulgação de material informativo sobre a temática.

Segundo Amanda, a entidade trabalha no Estado do Amazonas há 10 anos atendendo casos de violência sexual de alta complexidade, mesmo assim, muita coisa ainda precisa ser feita.

“Aqui em Manaus, por exemplo, e em muitos municípios temos as varas de crimes contra a dignidade de crianças e adolescentes, mas falta muito ainda, pois não há um acompanhamento efetivo para as vítimas de abuso. O Creas, que é o serviço da Assistência Social, que deveria ser pela Lei uma equipe multidisciplinar para acompanhar as vítimas de violência e de exploração sexual, essa mesma equipe acompanha outros casos então se torna humanamente impossível prestar uma qualidade de serviços a essas vítimas que são crianças e adolescentes abusados, que estão no Estatuto como prioridade absoluta”, aponta a coordenadora do Iacas.

“Em alguns casos, essas meninas e meninos, porque o número de meninos abusados vem crescendo muito nos últimos anos, ficam com os direitos prejudicados. O bálsamo para esse mal é a condenação desse agressor. Mas um acompanhamento sistemático e periódico para essas vítimas é raro. Por isso, acredito que há uma ausência de avanços sobre esses direitos estabelecidos em lei. Na legislação tudo parece simples, mas na prática, não é bem assim”, assinala Amanda.

“O Amazonas é atrasado em muitas questões. Se em Manaus esses processos são difíceis, imagina como isso acontece no interior do Estado e nos municípios de fronteira onde tudo chega com mais dificuldade. A questão da educação, por exemplo, para as crianças de comunidades e ribeirinhas e indígenas é atrasadíssima. Outro ponto é que há uma diferença no tratamento quando a vítima é filho (a) de ‘alguém importante’ no município, isso é um descaso porque a prioridade absoluta estabelecida no ECA, não acontece nesses lugares. O Estatuto é perfeito, é uma das leis mais perfeitas que temos no Brasil. Mas para que ele seja efetivo, é necessário que se cumpra o que foi determinado na Lei”, conclui a coordenadora do Iacas.

Sobre os desafios no tratamento ao menor infrator

Outro aspecto relevante do Estatuto da Criança e do Adolescente que precisa ser aprimorado, segundo os especialistas, são as regras sobre atos infracionais, que são os crimes praticados por crianças e adolescentes.

Em relação ao adolescente envolvido com a Lei, Mario Wu salienta que esse jovem receba uma medida sócio-educativa.

“Na legislação anterior, o código de menores não havia essa distinção. O código de menores tratava todos como um problema social e a criança que ficava órfão ou se envolvia com problemas com a Lei era tratada do mesmo modo e o Estatuto mudou essa distinção. O adolescente pode responder pelo ato infracional em liberdade ou receber uma advertência. Quem vai decidir isso é o juiz. O importante é que haja essa medida sócio-educativa e mais uma vez o que vemos é falha na prestação serviço público. Hoje, os adolescentes estão atrás das grades, quando na verdade deveriam estar em sala de aula recebendo essa medida protetiva”, assegura Mario.

Segundo Wu, alguns setores mais conservadores da sociedade ao invés de apoiarem a implantação das medidas sócio-educativas, tentam reduzir a idade penal dos adolescente com mais de 16 anos para que recebam um tratamento igual ao que se dá a um adulto. “Acho isso um retrocesso muito grande. Felizmente não é toda a sociedade que pensa assim”, completa.

Para Edmara Castro, da Sejusc-AM, os adolescentes que cometem um ato infracional são discriminados pela sociedade. “Infelizmente, temos uma sociedade muito desigual, o que faz esses adolescentes não terem acesso à educação, à saúde, à assistência social, ao carinho da família. Temos casos de adolescentes que já chegaram nas unidades que não sabiam sequer o próprio nome. Hoje, eles já escrevem cartas para as famílias. Por isso é importante a sociedade saber que esse adolescente apesar dele ter tido uma conduta errada, ninguém vai passar a mão na cabeça dele”, finaliza.

Governo de Bolsonaro X ECA

Em maio de 2019, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) lançou uma nova edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com pequenas alterações no texto.

Ocorreram duas mudanças mais importantes. A primeira foi a inclusão de trechos sobre a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, que criou o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas e instituiu regras mais rigorosas para crianças e adolescentes que viajem desacompanhados dos pais. A segunda foi a criação da Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência.

Outro ponto que há anos se discute relacionado ao ECA é a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. O presidente Jair Bolsonaro é favorável à redução. Trata-se, no entanto, de um tema que precisaria passar pelo Congresso.

Uma mudança relacionada ao estatuto que Bolsonaro já promoveu ocorreu em setembro do ano passado, via decreto: a redução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), órgão responsável por fiscalizar e garantir o cumprimento do ECA. O MMFDH justificou a medida afirmando que ela fazia parte da estratégia de redução de gastos do governo, e que as funções do Conanda seriam preservadas.

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