“A memória é uma coisa curiosa, não é? É uma proeza da engenharia. Fica no lobo temporal medial. E sua função mais impressionante é a capacidade de arquivamento. É melhor do que qualquer supercomputador. Outro dos meus fatos favoritos, considerando o objetivo deste julgamento: respostas certas, respostas erradas, conhecimento, a verdade é que, quando nos lembramos de algo, não estamos nos lembrando do evento original. Nós nos lembramos da última vez em que o recordamos. Então estamos sempre apagando nosso passado e editando um passado novo. Um que faça sentido para nós, agora, no presente. Todas as lembranças são, por definição, mentiras. Elas mudam. Nós a mudamos. O que não é crime nem conspiração. É apenas… a natureza humana.” Trecho de Quiz – Quem quer ser um milionário?
A série Quiz, com três episódios, estreou na Globoplay em março de 2021, mas eu só parei para assistir semana passada. Conta a história real do casal Charles e Diana Ingram, interpretados por Matthew Macfayden e Sian Clifford, que conquista o tão desejado prêmio de um milhão de libras no programa britânico de sucesso Quem quer ser um milionário?, no início dos anos 2000. O problema é que os criadores do programa acabam desconfiando que Charles só conseguiu acertar todas as quinze perguntas porque trapaceou: enquanto ele as avaliava em voz alta no estúdio, ele era ajudado por “tosses ocasionais” que indicavam a resposta correta. Os três capítulos de cinquenta minutos percorrem desde a criação do game show até o julgamento do casal, que foi indiciado pela suposta trapaça.
Como é uma série curta, fica fácil de acompanhar o arco narrativo de todos os personagens. Dos criadores do programa, a construção baseada nas emoções e nos desejos humanos, e como eles chegaram no modelo de sucesso exportado para todo o mundo; do irmão de Diana Ingram, um viciado em jogos que se infiltrou em uma comunidade conhecida como O Sindicato, que organizava pistas e montava métodos e dicas para ajudar pessoas a conseguirem participar do programa; de Charles, um major do exército britânico, pai de três filhos, que nunca havia pensado em participar de jogos de adivinhação; e, finalmente, de Tecwen Whittock, um professor universitário de 53 anos que tossia eventualmente durante a gravação do programa que levou Charles ao grande prêmio.
As aspas que abrem esse texto são da advogada de defesa no tribunal. Achei curioso e inteligente a descrição de como a nossa memória funciona e de como ela pode ser criada e manipulada por nosso cérebro. Eu fiz faculdade de artes cênicas e me recordo que, em uma das matérias, a professora falava como nossas referências e nossos estímulos precisam o tempo todo de renovação. É como se as memórias ficassem gastas com o tempo e, para que elas voltassem a funcionar de forma efetiva na construção e interpretação de um personagem, elas precisassem estar sempre vívidas, brilhantes, recentes. Refletindo hoje, mais madura, me parece claro que a gente mexe, deturpa e sobrepõe ideias aos arquivos originais da mente. Quem nunca ficou em dúvida se uma memória de infância era de fato uma lembrança verdadeira ou uma foto do instante?
Da mesma forma que editamos memórias individuais, existe também uma alteração de forma coletiva. Se chama “Efeito Mandela”: fenômeno que ocorre quando um grupo de pessoas compartilha uma memória falsa. O caso que deu nome ao fenômeno começou com Fiona Broome, uma pesquisadora de efeitos sobrenaturais que acreditava que Nelson Mandela havia morrido em 1990, quando, na verdade o ex-presidente sul-africano faleceria em 2013. Conversando com outras pessoas ela descobriu que muita gente tinha a mesma lembrança. Algumas chegaram a afirmar ter assistido à transmissão do seu funeral décadas antes. Como isso era possível? A partir desta memória falsa, a pesquisadora decidiu criar um site que se dedica ao estudo do fenômeno.
De volta à viagem nostálgica no universo dos games shows, Quiz entrega uma história que, mesmo a gente sabendo exatamente como vai terminar, nos deixa atentos, sentindo todas as emoções de um jogo: ansiedade, tensão e empatia por quem está na cadeira. A reconstituição dos cenários e a montagem da narrativa faz com que o telespectador queira maratonar os três episódios. E depois conferir o programa real na íntegra (disponível no YouTube), onde ficam sinalizadas as dezenove vezes em que as famosas tosses supostamente fizeram a diferença. Importante frisar que ao todo foram 192 tosses durante o episódio do programa em que Charles foi campeão.
Dirigida por Stephen Frears e com roteiro de James Graham, Quiz é entretenimento puro ao contar essa história que não ficou tão conhecida fora da Europa: dramático nas cenas de tensão e eletrizante no que parece ser uma grande aventura de conspiração. A dúvida sobre a fraude segue até o último minuto da série e continua até hoje. Mesmo depois da condenação, o casal Ingram ainda insiste que é inocente. De volta à mídia depois do lançamento da série no ano passado, vale acompanhar os desdobramentos do caso e tirar suas próprias conclusões. Afinal, as tosses foram cruciais para as respostas de Charles ou todas as pessoas envolvidas naquele estúdio foram tomadas por um possível Efeito Mandela?
Heloiza Daou é movida a palavra e um pouco obsessiva. É diretora de marketing na Intrínseca e também mãe do Tomás, o job mais insano e amado da vida.