Na média global, desde o começo do século 20, a expectativa de vida ao nascer mais do que dobrou, chegando hoje a 71 anos. Grande parte dessa melhora se deve às dezenas de vacinas desenvolvidas desde então, que achataram principalmente os índices de mortalidade infantil.
Doenças como poliomielite (paralisia infantil) e sarampo já são muito mais raras do que antigamente (apesar do esforço de movimentos antivacina em denegrir a imagem dos imunizantes), e há até exemplos de erradicação, como o da varíola, que se propagava pelo ar e matava 30% dos contaminados.
A Covid-19, com cerca de 2% de letalidade nos casos detectados, não é nenhuma varíola, mas mesmo assim já fez bastante estrago: são mais de 2 milhões de mortes em todo o mundo, e 10% disso só no Brasil.
Diante de um cenário em que a rotina foi virada de ponta-cabeça, a economia foi golpeada e nem a saúde mental foi poupada, as vacinas contra o novo coronavírus surgem como uma esperança de regresso, ao menos em parte, àquilo que um dia foi a normalidade.
“O ano de 2021 começou com uma grande esperança com as divulgações dos resultados dos estudos de fase 3 de diferentes vacinas, com eficácia variada em evitar casos leves, mas com um grande benefício em comum comprovado cientificamente: a redução impactante na progressão de casos leves para casos graves e hospitalização, internação em UTI e óbitos. Neste momento, mais importante que voltar ao antigo normal, o objetivo é salvar vidas e desafogar o sistema de saúde que está superlotado e até mesmo colapsado em alguns locais”, afirma Alexandre Barbosa, chefe da infectologia da Unesp.
No momento as duas vacinas mais próximas da população brasileira são a Coronavac, desenvolvida pela parceria entre a chinesa Sinovac e o Instituto Butantan e o fármaco da parceria Universidade de Oxford/AstraZeneca, com participação da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). Contando apenas essas duas, haverá cerca de 150 milhões de doses, o suficiente para imunizar (com duas doses) 35% da população brasileira.
Especialistas ouvidos pela reportagem são enfáticos ao dizer que a vacina, qualquer que seja, se aprovada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), deve ser tomada por aqueles que puderem.
“É um ato de respeito com você mesmo, mas especialmente um ato de respeito com o próximo. Pensando em você, todas as vacinas aprovadas pela Anvisa reduzem muito o seu risco de adoecer. Pensando no coletivo, quanto mais gente se vacinar, menos o vírus consegue circular”, explica Pedro Hallal, reitor da UFPel e coordenador-geral da pesquisa de prevalência do coronavírus no Brasil.
“Imagine o remorso de se sentir culpado se alguém próximo for infectado, e, pior ainda, morrer. O que se perde ao não se vacinar é muito. Vacine-se, se não for por você, que seja pelos seus amigos, sobretudo os de mais idade. Você deve se vacinar porque é a coisa certa a se fazer”, diz Luiz Eugênio Mello, neurocientista da Unifesp e diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Houve críticas com relação aos 50,38% de eficácia da Coronavac apresentados pelo Butantan no último dia 12, especialmente por causa do contraste em relação à apresentação anterior, que o instituto apenas ressaltou a proteção de 78% considerando somente casos que precisaram de assistência médica.
“Mesmo quando a eficácia da vacina não está entre as mais altas, do ponto de vista populacional, quando se tem um número suficientemente grande de pessoas imunizadas, pode-se atingir uma proteção coletiva e controlar epidemias. Por isso, assim que estiver disponível, vou me vacinar [independentemente do laboratório de origem] e vou recomendar a todos que convivem comigo que também se vacinem”, afirma Leo Bastos, estatístico e pesquisador em saúde pública da Fiocruz.
“Se temos uma vacina capaz de cortar pela metade a chance de ficar doente e de diminuir em quase cinco vezes a probabilidade de precisar de atendimento médico, por que não se vacinar? Pensando pelo outro lado, se você recusa a vacina, tem o dobro de chance de ficar doente e cinco vezes mais chance de precisar de atendimento médico. Vale a pena não se vacinar? Por que não se vacinar se a vacina tem quase zero efeito colateral?”, indaga a microbiologista e presidente do Instituto Questão de Ciência, Natália Pasternak.
A gravidade do cenário atual, com falta até mesmo de oxigênio para alguns doentes, tem de servir de motivação para que seja implementada uma estratégia de convencimento da população sobre a necessidade da vacina, avaliam os cientistas.
“O aumento dramático do número de casos graves e mortes já era previsto há algumas semanas devido ao afrouxamento de medidas restritivas e à desorientação do governo federal, que nega as recomendações da ciência, obriga o SUS a receitar medicamentos ineficazes e atrasa a vacinação. A única solução para debelar a pandemia é ter uma vacinação em massa, com máxima urgência, de modo a evitar mortes e dificultar a propagação do vírus”, afirma Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências.
Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde, de 2 milhões a 3 milhões de pessoas deixam de morrer todos os anos graças à existência de vacinas, o equivalente a 4 mortes evitadas por minuto. Outro 1,5 milhão poderia ser salvo caso a vacinação fosse universal.
“Não há outra maneira de sairmos deste caos”, diz a infectologista Rosana Richtmann, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas. “Temos que nos vacinar porque na história da humanidade a maioria das pandemias foram resolvidas com vacinação; porque temos vacinas seguras e eficazes para iniciar o processo; porque estão morrendo mais de mil brasileiros todos os dias de Covid-19; porque os profissionais da saúde estão exaustos, e quase descrentes; porque todos nós que temos um mínimo de sensibilidade temos medo desse vírus. Resumindo, porque nós temos que virar esse jogo —não há outro caminho ou outra opção; não existe plano B.”
“Eu quero me vacinar para não morrer, para não ficar doente, para não ter perigo de passar o vírus para outras pessoas e elas morrerem ou ficarem doentes. Quero me vacinar, também, porque sempre tomei vacinas e elas sempre foram boas para mim”, declara Rubens Belfort, presidente da Academia Nacional de Medicina.
Roberto Kraenkel, professor do Instituto de Física Teórica da Unesp e integrante do Observatório Covid-19 BR afirma que se vacinar é, mais do que uma atitude de proteger a si mesmo, um dever ético e um ato cívico.
“Vacinar-se é participar do esforço humano de se contrapor a uma pandemia que tem tirado a vida de muitos e arrasado a de tantos outros mais. A vacina é a nossa única chance à vista neste combate. Furtar-se de tomar a vacina é condenável. É uma desonra, é pôr-se à parte de um imenso empenho coletivo. É sombrio”, diz o físico, que acompanha de perto a evolução dos números da pandemia no país.
COMO AS VACINAS PROTEGEM
O INDIVÍDUO
Memória imunológica
Um dos princípios da vacinação é a indução da memória imunológica. Quando o indivíduo recebe uma vacina, ocorre a ativação do sistema imunológico, gerando células de memória
Resposta intensa
Essas células são responsáveis por proteger o indivíduo, caso infectado pelo vírus de verdade, provocando uma resposta imunológica ainda mais intensa e mais rápida do que aquela desenvolvida na ocasião da vacina
Anticorpos
O organismo responde à presença do vírus com a produção de anticorpos e a ativação de células capazes de destruir diretamente células infectadas
Ativação
Pode ser que essa ativação do sistema imunológico por meio de uma vacina não seja boa o suficiente para evitar completamente que a infecção aconteça, mas é possível reduzir sua intensidade
25 doenças
ao menos, podem ser evitadas pelas vacinas, entre elas o tétano, o sarampo, a febre amarela e a hepatite B
A SOCIEDADE
Imunidade
Uma pessoa que foi vacinada ou deixa de transmitir o vírus ou, por manifestar uma doença menos grave, pode ter o período de e a intensidade transmissão encurtados
Proteção de rebanho
Quando a maior parte da população é imune a uma doença contagiosa, surge uma proteção indireta ou proteção de rebanho mesmo para aqueles não imunes à doença (que não foram nem infectados naturalmente nem vacinados)
Fatores
A conta para calcular a porcentagem da população que precisa estar imune para a proteção de rebanho funcionar depende da eficácia das vacinas a serem aplicadas, do tempo que dura essa imunidade, e do índice de reprodução básico (R0) da doença, ou seja, sua velocidade de espalhamento
Prazo
Seriam necessários anos de exposição contínua ao vírus para que um mínimo da população fosse infectado e a proteção de rebanho fosse atingida naturalmente —regada a mortes
Exemplo
Com base na vacinação em massa, motivo do sucesso desse tipo de proteção para doenças como sarampo e poliomielite, esse tempo até a proteção coletiva pode ser de apenas alguns meses
2 milhões de mortes
pelo menos, são evitadas anualmente pela vacinação; mais 1,5 milhão ainda é evitável
Fontes: OMS, CDC, Universidade de Boston, Universidade Johns Hopkins, Stat News
Veja o que outros especialistas disseram:
Precisamos nos vacinar para nos protegermos, para conseguir diminuir o que mais nos aflige, que são as hospitalizações, para que a gente, a médio e longo prazo, consiga transformar a Covid-19 numa doença controlada, numa infecção que não impacte como hoje, a exemplo de tantas infecções e pandemias que tivemos no mundo e que se tornaram doenças do passado, como a varíola. Ainda há muito a aprender sobre a Covid-19 e sobre a vacinação, mas, neste momento, temos que vacinar para diminuir risco, óbitos e hospitalizações, não só pensando na gente mas em toda a população.
Isabella Ballalai. vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações
A média de vida humana aumentou por conta das condições sanitárias e certamente pela prevenção de doenças por meio de vacinação. Sem vacinas, estamos testemunhando o reaparecimento de doenças que estavam controladas, tais como sarampo e poliomielite. São doenças que matam, e só a vacinação pode proteger a população de contrair os vírus responsáveis por essas doenças. Vacinar é proteger a si e aos outros, é um ato solidário.
Lucile Winter, diretora da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e professora da USP
A vacinação tem dois objetivos. O primeiro é individual: eu não quero adoecer, ou, se adoecer, que não seja tão grave. Mas também é um ato de proteção de toda a comunidade. Outro motivo é que, a partir do momento em que todos se vacinam, fazemos uma proteção indireta daquelas que não podem se vacinar ou que têm uma resposta subótima à vacina, porque estão, por exemplo, imunossuprimidas.
Raquel Stucchi, professora de infectologia da Unicamp
No plano individual a vacina gera um determinado grau de proteção contra a doença, no caso da Covid-19 uma doença que pode levar você para o hospital, para a UTI e tirar sua vida. É uma proteção importante e que sempre vale a pena. De outro lado, no plano coletivo, vacinar-se significa cumprir um papel de fazer a circulação do vírus ser mais restrita. Menos ele vai circular e menor a chance de que essas pessoas adoeçam. São dois motivos nobres: a própria vida e o papel como cidadão na coletividade.