Não foi fácil atravessar o ano de 2020, mas o fim dele preocupa ainda mais a desempregada Bianca Duarte da Silva, de 25 anos. A partir de janeiro, ela fará parte do grupo de cerca de 67 milhões de brasileiros que deixarão de receber o auxílio emergencial, já que o benefício criado para minimizar os impactos econômicos da pandemia de covid-19 não foi prorrogado para 2021 pelo Governo de Jair Bolsonaro. Moradora de São Paulo, a desempregada já calcula o que precisará cortar no próximo ano.
“Esse dinheiro ajudou muito nas despesas, na questão de alimentos e fraldas. Tenho um bebê e uma criança de 8 anos. Agora, dependemos todos de uma única renda, que é a do meu marido. Por conta da pandemia, não sei quando conseguirei procurar um emprego. Vai ficar apertado”, explica a jovem, que atuava antes como promotora de vendas, um exemplo da angústia vivida por essa parcela da população brasileira.
A equação para Bianca gerar mais renda não é fácil. Com as escolas e creches ainda fechadas, ela não tem com quem deixar os filhos para procurar um novo posto de trabalho e, ao mesmo tempo, está com medo do aumento dos casos de coronavírus na capital paulista. O ano terminou, mas a pandemia não.
“Antes torcia para as escolas reabrirem, mas com o aumento de casos da doença colocaríamos todos em risco. O melhor seria mais parcelas do auxílio. Eu ainda tenho meu marido trabalhando. Mas e as tias dele que só vivem do auxílio, como vão fazer?”, lamenta. Hoje, 5% da população nacional vive apenas do benefício, segundo a última pesquisa PNAD Covid, do IBGE.
A prorrogação desejada por Bianca e milhões que continuam sofrendo os impactos da crise sanitária já é, no entanto, carta fora do baralho para o Governo. “Auxílio é emergencial, o próprio nome diz: é emergencial. Não podemos ficar sinalizando em prorrogar e prorrogar e prorrogar”, afirmou o presidente Bolsonaro na última terça-feira (15). O presidente também ressaltou que não haverá o Renda Brasil, um novo programa que chegou a ser aventado durante este ano para substituir o auxílio emergencial. A expectativa era que o benefício fosse criado a partir da reformulação de vários programas sociais, mas ele não chegou a virar uma proposta nem no papel.
“Quem falar em Renda Brasil, eu vou dar cartão vermelho, não tem mais conversa”, ressaltou o presidente. Segundo ele, a ideia é aumentar um pouquinho o Bolsa Família.
Além das famílias atingidas, o fim do auxílio emergencial, em um momento em que o país vê crescer novamente o número de casos de covid-19 e a economia está longe de sair da paralisia, também preocupa especialistas ouvidos pelo EL PAÍS. Os efeitos do benefício foram grandes e fizeram, inclusive, a pobreza diminuir no país, ainda que de forma temporária. Ela passou de 23% da população, em maio, para 20,9%. A extinção da transferência de renda pode, no entanto, causar um efeito contrário a partir do próximo ano. Caso o auxílio não tivesse sido oferecido desde abril, o índice de pobreza teria saltado para 36% durante a pandemia, segundo cálculos de Rogério Barbosa, professor do IESP-UERJ e pesquisador da USP.
“A renda dos mais pobres de fato aumentou, mas essa melhora é ilusória. O dinheiro que chega é gasto imediatamente nas necessidades básicas, que se impõem. O auxílio não se converte em nenhum tipo de benefício duradouro. A real taxa de pobreza é quando você deixa de computar o auxílio”, pondera.
Queda de arrecadação e falência de pequenos negócios
Para o pesquisador, além da queda de renda da população, o fim do benefício irá afetar a arrecadação de Estados e municípios e também os pequenos comércios locais. O auxílio não tem apenas impacto sobre os pobres e vulneráveis que recebem, mas também no seu entorno, já que injeta recurso na economia.
“O dinheiro recebido circula em comércios pequenos mantendo empregos e gera impostos no nível municipal e estadual. Claro que o auxílio não se paga ou volta para os cofres da União, mas vai para Estados e municípios de forma indireta. A pobreza pode chegar a 30% eventualmente se os negócios começarem a falir ainda mais e houver quebra generalizada”, explica.
O desafio da equipe econômica para decidir, nos últimos meses, sobre a continuidade do programa era encontrar uma fonte de financiamento que coubesse dentro da regra do teto ― que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação. Tarefa complexa para um orçamento engessado e em um momento que a saúde das contas públicas é uma das piores dos últimos anos, assim como a dívida do país, que pode chegar a 90% do PIB. As primeiras parcelas do auxílio no valor de 600 tiveram um custo de cerca de 51,5 bilhões de reais por mês. O valor caiu para a metade nos últimos meses do ano, quando a parcela do benefício foi reduzido em 50% (300 reais).
Na avaliação do economista Marcos Mendes, do Insper, se o país apresentar um aumento de despesa muita alto por um longo período certamente vão piorar as condições financeiras da economia.
“E o que você eventualmente estará dando para a população mais pobre, você estará tirando por conta da deterioração econômica, com juros alto, inflação, estagnação”. Porém, o economista pondera que em uma situação de agravamento da pandemia não há como não dar assistência aos mais vulneráveis. “É uma situação bastante difícil porque a gente já gastou mais do que poderia em excesso e agora está faltando munição num eventual momento crítico da pandemia”.
Para Mendes, o ideal seria redirecionar os recursos atuais de política social para os 40% mais pobres da população. “Há dinheiro, mas ele é mal direcionado. Os programas precisam ser aperfeiçoados ao longo do tempo. O presidente interditou, no entanto, esse debate com o discurso populista, de que não iria tirar dinheiro de ninguém”, explica. Bolsonaro foi contra, por exemplo, qualquer mudança no abono salarial, uma espécie de 14º salário para quem ganha até dois salários mínimos.
“Não podemos tirar dos pobres para entregar para os paupérrimos”, disse o presidente em agosto.
Já o pesquisador Rogério Barbosa defende que o momento atual de crise sanitária permite um endividamento do Estado. “Isso não é uma questão em outros países. A Inglaterra, por exemplo, está dizendo:
‘vamos endividar depois a gente paga. Não é um crescimento da dívida em condições normais, isso é uma precaução com respeito a consequências muito piores. Não estamos fazendo gastos estatais em tempos de bonança”, diz.
Embora o presidente insista que estamos hoje “no finalzinho da pandemia”, mesmo com o país voltando a registrar mais de 1.000 óbitos diários pela covid-19, a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva afirmou em entrevista a esta jornal que não estamos fora de perigo, e que o auxílio emergencial deveria continuar em países como o Brasil. “Tirar esse salva-vidas prematuramente é um perigo em relação à pobreza e desigualdade. Retirar o apoio também prejudicaria a recuperação: até agora o que vemos é que os países que estão se recuperando de forma mais rápida têm em comum ter conseguido controlar a pandemia e ajudado as pessoas e as empresas”, afirmou ao jornalista Ignacio Fariza.
Desemprego pode ter salto
Os empregos podem ser outras vítimas da pandemia. A taxa de desemprego ― em 14,6%, no terceiro trimestre ― pode dar um salto com o fim da transferência do auxílio emergencial. Muitas pessoas que perderam seus postos de trabalho não voltaram a procurar outro por conta da pandemia e as regras de quarentena. É o que Barbosa denomina “desemprego oculto” pelo distanciamento social.
“Elas estão desempregados, mas não estão na estatísticas. O desemprego oculto foi diminuindo ao longo dos meses, se transformando em desemprego real, mas se você computa os dois índices você possui um taxa de 25% de desemprego. Ainda que a taxa de ocupação esteja de fato se recuperando, o desemprego cresce em velocidade mais rápida do que a própria ocupação”, explica.
Pelos cálculos do pesquisador, podemos chegar a ter 25 milhões de pessoas na fila do desemprego no país. E as taxas de pessoas buscando emprego serão maiores nos Estados do Norte e Nordeste.
* El País