Em um ano de pandemia, o País viu empresas doando bilhões de reais para o combate aos efeitos sociais e econômicos da crise sanitária, bancos se unindo para banir os pecuaristas que desrespeitam leis ambientais e, mais recentemente, centenas de companhias juntas para acelerar a vacinação contra a covid-19. O movimento, que já parecia forte, chegou ao ápice na última semana, em meio a uma mobilização que reuniu nada menos que 800 empresas em torno da defesa da diversidade e para derrubar um projeto de lei que tentava restringir a representação da comunidade LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexuais e assexuais) na publicidade, conforme a reportagem do Estadão.
Mas por que tantas empresas, que antes se mantinham silenciosas, de repente decidiram se posicionar? O executivo Walter Schalka, presidente da gigante de papel e celulose Suzano e com quatro décadas de experiência no mundo corporativo, acredita que o setor produtivo se deu conta que não existe de forma apartada ao que ocorre fora de suas salas de reunião.
“Ficou claro, enfim, que ganhar eficiência e produtividade só dentro da empresa não basta. E que não teremos uma sociedade justa se não endereçarmos os problemas sociais e estruturais do País.”
Dentro dessa busca por uma sociedade mais equilibrada, as empresas têm adotado uma miríade de causas. O grupo Mulheres do Brasil, presidido por Luiza Helena Trajano – também líder do Unidos pela Vacina –, busca a inserção feminina em cargos de liderança, mas também levanta a bandeira da igualdade racial. O Magazine Luiza, aliás, lançou um programa de trainees voltado só a candidatos negros, para corrigir o que identificou como uma falha estrutural de sua equipe, que só tem 16% de líderes negros – e acabou seguido por outras companhias.
A tendência de olhar para fora se refletirá, cada vez mais, no que se valoriza da porta para dentro das empresas, segundo especialistas. Já há um movimento forte de extensão do conceito de licença-paternidade – para que os homens participem mais dos primeiros meses de vida dos filhos – e de definição de bônus a partir de metas ESG (sigla em inglês para ações nas áreas ambiental, social e de governança).
Sem retorno
Segundo especialistas, às empresas resta aderir aos novos tempos ou correr o risco de ficar para trás. Para o secretário executivo do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+, Reinaldo Bulgarelli, a ação coletiva de marcas contra o PL 504 – de autoria da deputada estadual Marta Costa (PSD), que citava “inadequada influência” na propaganda – está inserida neste contexto. “De dois anos para cá, há um movimento mais vigoroso. Dou muito valor a essa mudança, porque as empresas entenderam que elas não podem ficar entregues a esse tipo de projeto. É um posicionamento de direitos humanos.”
Entre as empresas que se posicionaram contra o projeto, estão multinacionais (como a P&G), bancos (Itaú Unibanco), varejistas (Riachuelo), consultorias (PwC) e a locadora Localiza. Na quarta-feira, diante das reações, o texto foi retirado da pauta de votação e voltou para a fase de análises nas comissões.
Segundo Leandro Camilo, sócio e líder de inclusão e diversidade da PwC, esses e outros movimentos de diversidade refletem uma exigência da sociedade que consome produtos e serviços dessas empresas.
“Hoje, existe uma maior disposição das empresas nesse sentido. Ainda há grandes desafios, mas esse ‘barulho’ contra o PL 504 reflete esse maior comprometimento do empresariado com essa causa que é tão importante”, diz o executivo. “As companhias estão começando a entender que fazem parte não só dos problemas, mas principalmente das potenciais soluções.”
Causa x marketing
Mas será que todos os movimentos em relação à inclusão em todos as suas formas são sinceros ou só uma forma de tentar agradar? Para Herbert Steinberg, presidente da consultoria Mesa Corporate, é preciso tomar cuidado com discursos vazios.
“Você não vai ver ninguém hoje dizendo que não apoia um programa de diversidade ou de governança porque isso pega mal. Mas, daí a essas empresas serem realmente aderentes a esse princípio, é algo completamente diferente.”
Adotar essa variedade de causas sociais – de preferência, escolhendo aquelas que têm maior aderência a seu posicionamento – será também uma política comercial para as empresas, segundo Steinberg.
“Não dá para ir contra a maré. É necessário entender as questões culturais e o que está acontecendo no mercado. E traduzir esse pensamento em ações, no orçamento, fazendo uma discussão de propósito.”
Novos CEOs podem trazer ventos da mudança
À medida que empresas trazem uma nova geração para posições executivas, a diversidade ganha mais um vetor de incentivo. A gigante siderúrgica Gerdau, por exemplo, passou a fazer parte do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+. Segundo Reinaldo Bulgarelli, secretário executivo da entidade, a adesão está ligada à mudança de comando na empresa, que passou a ter Gustavo Werneck como CEO.
A Gerdau afirmou ao Estadão ter a ambição de se tornar uma das indústrias mais inclusivas. Desde 2019, realiza um programa de diversidade com cerca de 700 funcionários. A empresa tem um grupo interno voltado ao combate ao preconceito e, recentemente, preparou uma cartilha para garantir a inclusão em processos seletivos.
Agência de empregos fala em maior adesão das empresas
Cofundadora de uma consultoria especializada em inclusão e diversidade e da agência TransEmpregos, que tem a missão de incluir a comunidade trans no mercado de trabalho, Maitê Schneider, de 50 anos, diz que o interesse das grandes companhias em relação à diversidade viveu um momento de “divisão de águas” na última semana na esteira da derrubada do projeto de lei 504 – que tentava restringir a veiculação de publicidade com representação da comunidade LGBTQI+ – na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). “Está acontecendo um ponto de mutação”, diz a especialista.
Segundo Maitê, a própria trajetória da TransEmpregos pode ser vista como evidência da velocidade que o debate sobre diversidade está ganhando nos últimos meses.
“A TransEmpregos acabou de fechar 837 empresas parceiras nesses sete anos de atuação. E as últimas 200 empresas entraram nos últimos dois meses. Então, olha a velocidade (aumentando)”, explica. “A gente acabou de fechar hoje com a Amazon. Então, está acontecendo.”
No fim das contas, o projeto de autoria da deputada Marta Costa (PSD), que tinha o objetivo de restringir a diversidade, foi, na visão de Maitê, um “mal que veio para o bem”. Ela diz que o total de empresas em busca de orientação sobre inclusão triplicou no LinkedIn ao longo da última semana. “Eu acredito que não só para LGBTQIA+, mas para (outras) pessoas, para grupos que são mais vulneráveis, marginalizados, o acesso vai ser mais potente.
Presidente da operação brasileira da multinacional de bens de consumo Procter & Gamble – gigante corporativo que faturou US$ 70 bilhões no ano passado –, a executiva Juliana Azevedo acredita que a pandemia de covid-19 aumentou a exigência de posicionamento de grandes companhias ao redor do mundo, pois atingiu de forma desproporcional justamente os grupos sociais mais frágeis. “Temos de trabalhar por ações afirmativas e reparadoras”, afirma.
Sim. A pandemia e o assassinato de George Floyd (que foi morto por um policial nos EUA) realmente catapultaram a tendência da sociedade em tomar posição. Não basta você não ser racista, você tem de ser antirracista, tem de trabalhar por ações afirmativas e reparadoras.
E é inevitável que uma grande companhia adote isso hoje?
Eu tenho a sorte de atuar em uma empresa que há muito tempo pensa em propósito. Desde o século 19, mulheres já estavam nas gerências de fábricas da P&G. E temas da comunidade LGBTQIA+ já eram tratados, com outra nomenclatura, desde os anos 1970. Então, temos essa preocupação vindo de dentro. E a pandemia acelerou isso: a consciência de que a responsabilidade de uma empresa não é só funcional. Adotar causas sociais é um caminho que não tem volta. O momento é uma oportunidade de intensificar isso, de trazer outras empresas (para o debate).
O que a P&G já conseguiu construir, internamente, em termos de diversidade?
Temos 40% de mulheres (na nossa equipe), 50% na liderança de gerência para cima e 50% entre os CEOs (das operações ao redor do mundo). Nós temos uma fluidez em relação a esse assunto, mas não temos medo de apresentar nossas vulnerabilidades. Agora, temos o desafio de ter 100% de nossas embalagens plásticas recicláveis ou feitas de material reciclado.
Com o movimento #PrideSkill, a P&G quer servir de exemplo a outras empresas?
A gente vê nossa posição com responsabilidade, no sentido de que não temos apenas de manter (o ritmo), mas acelerá-lo. O desemprego na comunidade LGBTQI+ é de mais de 20%, enquanto o da população em geral é de 14,4%. As minorias – e também as maiorias minorizadas, como as mulheres – acabam sofrendo mais em tempos de crise como o atual.
Qual é o objetivo da plataforma de diversidade?
O aspecto (da orientação sexual) é parte do que as pessoas são. E há, sem dúvida, um preconceito estrutural. Tanto que 30% das empresas dizem que não contratariam (pessoas LGBTQIA+) para cargos de alta liderança. Então, nossa campanha é para sugerir e recomendar que as pessoas coloquem em seu currículo a questão do #PrideSkill como uma habilidade. É um programa de longo prazo. Muitas das nossas intervenções sociais têm se tornado plataformas para promover transformações duradouras. E estamos preocupados também com a comunidade trans, que é um grupo (dentro da comunidade) que sofre ainda mais.