A frase é minha e de outras muitas mulheres e cuidadoras que, por diferentes motivos, acordam todas as madrugadas uma, duas, três, quatro ou muito mais vezes por conta de seus filhos. Para mães que amamentam exclusivamente no peito, o acordar é ainda mais frequente e com uma demanda energética que suga, além do leite, toda a vitalidade extra que não temos. Bebês muito pequenos acordam muito, por inúmeras razões, mas infelizmente o despertar com frequência não se restringe só aos primeiros meses deles. Esses despertares podem durar semanas, meses e até muitos anos.
Eu tenho um filho de 4 anos e meio e nos últimos anos acabei mudando a forma de encarar esse sono interrompido. Já faz bastante tempo que ele dorme as noites quase inteiras, levantando esporadicamente para trocar de cama e/ou fazer xixi. Essa interrupção está longe de ser agradável, mas ela é bem diferente de quando acordamos com uma função que exige de nós algum nível de concentração como amamentar, trocar uma fralda ou fazer com que o bebê volte a dormir.
Envolvida completamente pelos despertares noturnos da Cora, minha bebê de 2 meses, ouvi o episódio mais recente do ótimo podcast Vibes em análise, que destrincha a questão do sonhos esquecidos, a escassez de tempo e as reflexões a partir deste universo onírico. O papo é incrível e mostra a importância do sonhar e de como ali é possível resolver muitas questões de nosso subconsciente.
“Dormir é uma experiência de abandono da consciência, perder o controle do nosso pensar e sentir, é um tempo que precisamos nos deparar com o nosso próprio vazio por algumas horas, se retirando do mundo. Esse é o verdadeiro offline, o encontro da solitude”, diz Lucas Liedke, psicanalista e um dos apresentadores do podcast. A conversa segue o fluxo de como esse sono é importante e como a sociedade do cansaço faz com que a gente procure função até no ato de dormir, mas ao escutá-la fiquei pensando: E se não dormir não for uma escolha? E quando esse desconectar-se da realidade, tão importante, não é para todos?
Uma pesquisa feita pela Universidade da Califórnia mostrou que a falta de sono de mães nos primeiros seis meses após o nascimento dos seus filhos pode acelerar o envelhecimento celular entre três e sete anos. Estamos falando de um desgaste físico e neurológico de uma parcela grande da população mundial que simplesmente envelhece – e aqui nada tem a ver com rugas ou estética – ao cuidar de outros seres humanos e colocá-los em primeiro lugar. Diante do fato de que não existe como montar um banco de horas de sono e que as pessoas só podem nascer – pelo menos, até agora – via útero, não seria de mais valia olharmos para essas mulheres com um pouco mais de cuidado, apoio e empatia?
Aliás, sobre empatia, ela e outras funções mais complexas do cérebro, como otimismo e sociabilidade, além de cognição, memória, imunidade, pressão e hormônios, também podem ser impactadas pela privação do sono, como demonstra esse outro estudo. Difícil se colocar no lugar do outro e interpretar sentimentos alheios, inclusive do bebê que está sendo cuidado, quando a gente não consegue nem saber direito quem somos.
Segundo o professor de neurociência e psicologia Matthew Walker, o índice de reciclagem do cérebro de um ser humano é de dezesseis horas. Após esse período, ele começa a falhar. Os seres humanos precisam de mais de sete horas de sono todas as noites para manter o desempenho cognitivo e não é possível acumular horas de sono antes ou recuperá-las depois de forma efetiva.
Walker cita em seu livro Por que nós dormimos uma pesquisa envolvendo um grupo de pessoas que foi embriagado e outro que ficou dezenove horas acordado. Os resultados são impressionantes: aquelas privadas de sono tiveram a cognição tão prejudicada quanto as que beberam álcool. Imagine o trabalho das mães, que passam o dia inteiro no cuidado intensivo com as crianças e que na hora de dormir não conseguem emendar horas de sono significativas para o descanso cerebral. Estamos falando de mulheres que estão com o mesmo efeito causado por álcool na mente e que estão cuidando – muitas vezes sozinhas – de bebês e crianças que são 100% dependentes delas.
A quantidade de artigos e pesquisas sobre a importância e a qualidade do sono e também as consequências nefastas de sua privação é impressionante. Os exemplos envolvem, principalmente, a direção nas estradas e o rendimento no dia seguinte, seja nos estudos ou no trabalho. Me choca perceber que mesmo sendo um assunto que toca todos nós, afinal todo mundo dorme, ou pelo menos deveria, não há uma colocação das mães, que passam por mais essa dificuldade diariamente, podendo se estender por semanas, meses e anos no centro deste debate.
Fica então os questionamentos de sempre: será que se fossem os homens os principais cuidadores de bebês e crianças pequenas esse não seria um assunto mais amplamente discutido por toda a sociedade? Será que soluções envolvendo redes de apoio efetivas para períodos de descanso reais já não existiriam? Já que temos provas e pesquisas de como é prejudicial que as pessoas não durmam, é justo que a discussão sobre a privação de sono materna – que acaba se transformando em uma lamentação resignada – e suas consequências fique reservada apenas ao grupos de mães e cuidadoras?
*Heloiza Daou é movida à palavra e um pouco obsessiva. É diretora de marketing na Intrínseca e também mãe do Tomás e da Cora, o job mais insano e amado da vida.