*Por Juliane Isler do Greenme
Para aqueles pais que moram com os filhos, ainda que não haja uma grande reunião de família, o dia poderá ser comemorado em companhia. Mas para os pais que não moram com os filhos ou não estão próximos deles, ou que perderam o convívio diário por causa da quarentena e regras de isolamento, é bem possível que não haja Dia dos Pais ou que ele seja comemorado de forma bem diferente, talvez com o uso de tecnologia, sem abraços ou contato físico.
De qualquer maneira, para aqueles que mantêm o vínculo e o afeto, alguma forma de não deixar a data passar em branco, ainda que de um jeito pouco convencional, pode ser arranjado.
Mas tem uma parcela significativa de “pais” que, de fato, com pandemia ou sem pandemia, a data não deveria sequer existir ou ser comemorada. São os pais ausentes ou que pouco assumem suas responsabilidades.
Reflexo da sociedade
Se para as mães já temos uma sentença traçada pelo credo popular “padecer no paraíso”, levando a crer que a sociedade atribui às mulheres todas as auguras de parir e criar filhos, aos pais parece que foi destinada a melhor parte, de colher os frutos e os louros.
Calma, muita coisa vem mudando. É a clássica máquina giratória evolutiva, ainda bem.
Os homens estão cada vez mais conscientes e estão sendo cobrados pelas mulheres a alterar esse papel, a se incluir nas tarefas de cuidado e criação dos filhos, em paridade, sem se tratar de ajuda, mas de mera responsabilidade.
Mas essa mudança é lenta e requer ainda muito debate.
Nessa semana, um vídeo publicado no Twitter pelo ator Marcelo Adnet, gravado para o programa SintaSeEmCasa, de autoria do próprio, intitulado, “Comercial do Papai Macho”, trouxe uma importante reflexão sobre esse tipo de pai que ainda insiste em tentar se perpetuar como modelo a ser aplaudido.
No vídeo, o ator interpreta um verdadeiro “homem macho”, idolatrado pelo cidadão de bem. Ele estufa o peito e afirma que é um cara macho, meio grosso, às vezes violento, que gosta de beber, é “pegador” e quanto ao filho, não tem paciência e cabe a mãe “aguentar” a molecada. E finaliza, cantando uma musiquinha bem pegajosa, mas com uma frase bem reveladora: “não fala com o filho, mas chama os amigos de filhão, figura ausente que paga de machão”. O vídeo termina com ele fazendo carinho e abraçando um… carro!
Comercial do Papai Macho #SintaSeEmCasa https://t.co/Cqk9PfFMuQ pic.twitter.com/69CMciJwb0
— Marcelo Adnet (@MarceloAdnet) July 30, 2020
Percebe-se que, mesmo usando de paródia, ironia e humor, o que o ator quis mostrar é um pai ausente, que não liga para a criação do filho, não se envolve, é egoísta, seu objetivo principal é “curtir” com os amigos, sua prioridade é o jogo de futebol e o churrasco.
Mas ao contrário do que esse cenário desastroso e triste aparenta, para a sociedade, se o pai trabalha, é “um cara descolado”, desfila no seu carro e paga uma pensão bem aquém do que o filho precisa e merece, ele parece ter cumprido o seu papel social de pai.
Novamente, não se trata de generalização, mas as estatísticas comprovam que é muito alto o número de mães solteiras, justamente porque os pais dos seus filhos os abandonaram.
Mães solos
Segundo o IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2005, o país tinha 10,5 milhões de famílias de mulheres sem marido e com filhos, morando ou não com outros parentes. Já em 2015, eram 11,6 milhões, ou sejam, um aumento de mais de 1 milhão de mães solos em 10 anos.
Enquanto mães solteiras representavam 26,8% das famílias com filhos em 2015, os pais solteiros representavam apenas 3,6%.
Segundo Cristiane Soares, pesquisadora da Coordenação de População e Indicadores Sociais do IBGE, os dados são reflexo da dinâmica social e revelam que
“vivemos em uma sociedade machista em que a responsabilidade do filho ainda é da mãe.”
E não se trata de pagamento puro e de simples pensão alimentícia, mas no compartilhamento dos deveres e obrigações quanto a criação dos filhos, inclusive na manifestação de afeto.
Trabalhar, pagar as contas e “brincar” aos finais de semana não é suficiente, não chega nem perto das necessidades físicas, emocionais e práticas que devem ser atendidas em relação aos filhos.
No caso das mães consideradas solos, nem isso seus filhos recebem.
Falta de empatia e preconceito
Outra polêmica que suscitou a discussão sobre o papel dos pais, foi em relação ao Thammy Miranda, homem trans, que foi escolhido para ser uma das figuras públicas a participar da campanha do Dia dos Pais para a marca de cosméticos Natura.
De imediato os machos de plantão e principalmente os homens intitulados “cidadãos de bem” e “defensores da família”, “conservadores”, reagiram fortemente contra a escolha, promovendo uma devassa nas redes sociais com posts e comentários preconceituosos, inclusive propondo um boicote aos produtos da empresa.
Percebe-se que, mesmo em tempos de pandemia, frente a milhares de mortos, em momentos de tragédia, as pessoas não conseguem desenvolver a empatia necessária para acolher com amor e respeito as diferenças naturais da vida em sociedade.
Se vivemos numa democracia que prega a liberdade e o cumprimento de deveres e obrigações para garantia de direitos, a intolerância não deveria ser argumento para rechaçar a figura de um pai, que aparentemente é amoroso e dedicado, simplesmente pelo fato de ser um homem transexual.
Mas infelizmente não foi o que se viu e se praticou. Fomentou nas redes e nas conversas nas ruas, pessoas pregando o ódio e alimentando o preconceito.
Por causa disso, também ouve reação, inclusive do próprio Thammy que levantou justamente essa questão em seu Twitter. Para ele, ser pai, é dar bons exemplos, amor e assumir responsabilidade, “não abandonar a mulher ainda grávida”.
Enquanto nossa sociedade continuar acreditando que o debate deve girar em torno do sexo e do gênero dos pais, e não sobre o papel que cada um exerce enquanto responsáveis pela criação e afeto dedicado aos filhos, caminharemos a passos muito lentos.
Valorização masculina
A grande catástrofe, a grande desgraça é a maneira como a cultura, desde sempre, desde a antiguidade, interpretou esses dois papeis, feminino e masculino, e passou a valorizar muita mais a figura masculina.
Para o pediatra, psicanalista e professor Paulo Schiller, é sob esse fundamento que se construiu nosso psiquismo. Isso é tão forte, é tão poderoso, que tem força de lei.
Conforme Schiller disse numa palestra “Ser pai”, para o Programa “Café Filosófico”, um número muito grande de famílias, não todas, mas quase todas, valorizam muito mais os meninos e, paradoxalmente, isso parte de muitas mulheres também, inclusive os filhos costumam ser mais grudados, mais apegados às mães, à figura feminina.
Para o psiquiatra, essa valorização do sexo masculino é tão poderosa que nem as mães escapam disso e as consequências são percebidas nas clínicas médicas e psiquiátricas.
Para o professor, a grande maioria dos casos de autismo, de psicopatia, perversão e hiperatividade é de meninos. As doenças psiquiátricas mais graves acometem homens.
E isso se reflete em praticamente todas as culturas no mundo, umas mais outras menos, mas em todas, sendo indiscutível a necessidade de mudarmos esse cenário.
Segundo o médico, varrer para debaixo do tapete, não falar sobre o assunto, esquecer, é prato cheio para o recalque, a repetição e cada vez mais forte.
Então, a melhor forma para mudarmos uma cultura é falar sobre o tema, incansavelmente, mesmo que pareça repetitivo.
E nada melhor que o dia dos pais para refletirmos esses papéis.
Feliz Dia dos Pais sim, mas aos homens conscientes e responsáveis de seu papel, daqueles que se preocupam se vai chover e o moletom vai secar porque o filho só tem aquele, se as meias estão secas, se a comida está faltando, se a vacina está em dia, melhor, onde se guarda a caderneta de vacina, para muito além do pagar as contas, do brincar, do cuidar, em verdadeiramente assumir os deveres e obrigações, através do cumprimento das tarefas que a criação de um filho demanda, desde o nascimento até o final da sua vida.
Esse é um modelo de família possível que pode ser muito mais feliz.