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Devastação na Amazônia acelera com apagão da fiscalização e tem até ‘youtuber da motosserra’

O canal “Jacundá – a Terra Prometida” no YouTube, criado em abril, tem três vídeos. No maior deles, um homem se apresenta como Humberto Pereira, está sentado em um sala que parece um escritório e faz propaganda de lotes de terra. Em outro, aparece caminhando por uma clareira no meio de uma floresta. Enquanto descreve o lugar ocupado por barracos, ouve-se o barulho de uma motosserra.

A tal “terra prometida” fica dentro de uma das unidades de conservação mais bem preservadas da Amazônia, a Floresta Nacional do Jacundá, no norte de Rondônia, com 221 mil hectares de mata praticamente virgem. Pela lei, apenas populações tradicionais que já habitavam a região antes da sua criação em 2004 poderiam viver no local, mas hoje há muito mais gente. Ao todo, são cerca de 300 forasteiros, segundo O Globo.

 

 

No domingo, 30 de maio, ÉPOCA foi conhecer a “terra prometida” nos vídeos do YouTube e tudo naquele pedaço da Amazônia parecia o retrato mais bem acabado da força da grilagem de terras sob o governo de Jair Bolsonaro, que tem Ricardo Salles como ministro do Meio Ambiente. Foi ele que, no dia 22 de abril de 2020, durante uma reunião ministerial, defendeu “passar a boiada” sobre a legislação ambiental enquanto as atenções estavam voltadas para a pandemia, num discurso com consequências destruidoras para a Amazônia.

ÉPOCA foi a alguns dos pontos onde o desmatamento na Amazônia é mais crítico para  mostrar, na prática, o impacto das principais “boiadas de Salles”, que fomentaram invasão de áreas de floresta, desmonte dos órgãos de controle ambiental, flexibilização das regras de fiscalização e comércio ilegal de madeira.

A Floresta Nacional do Jacundá só é acessível por estradas de terra. Ela fica a aproximadamente 100 quilômetros de Porto Velho, mas a estrutura por trás da sua invasão é empresarial. Há quem faça o papel de corretor de imóveis, tem o líder do acampamento e os seguranças. No domingo, não havia sinal do youtuber Pereira no lugar. A entrada da reportagem foi autorizada por um homem que se identificou como Cristiano Dias. A hierarquia era evidente. Enquanto a maioria dos invasores usava bermudas, chinelos e camisas velhas de futebol, Dias estava de calças jeans do tipo skinny, botas de couro marrom, camisa rosa, boina de couro preta e óculos escuros. Tudo aparentemente novo.

Na entrada da invasão, um posto de controle monitorava quem entrava e quem saia da área. Homens armados usavam walktalks. Barracos de madeira, alguns cobertos com lona e outros com folhas de palmeira, se espalhavam numa enorme clareira que se estendia por pelo menos dois quilômetros no meio da mata virgem. Crianças corriam de um lado para o outro entre picapes da Toyota e Mitsubishi.

Cristiano Dias, 31, chefe do assentamento em crescimento. Foto: Fotografia: Brenno Carvalho / Agência O Globo.
Cristiano Dias, 31, chefe do assentamento em crescimento. Foto: Fotografia: Brenno Carvalho / Agência O Globo.

Dias contou que decidiu liderar a invasão depois de ver reportagens nas quais Bolsonaro e Salles diziam que revisariam a situação das unidades de conservação na Amazônia.

— Eu vi a matéria do ministro (Salles) e do (Jair) Bolsonaro, né? Eu vi a matéria dessa questão. Eu vi o relato de que ia acelerar (a revisão dos limites das unidades de conservação). Hoje a Internet e chega pra você e chega pra gente também, né? — disse Dias, que informou cobrar R$ 15 mil de quem quer “lutar” pelo direito de ter um lote de 114 hectares na floresta recém-ocupada.

Ele diz que a ideia de usar a internet para atrair mais invasores foi de Humberto.

Na lógica das invasões na Amazônia, quanto mais gente melhor. Quem explica é o youtuber da motosserra.

“Quando o povo entra, mas com pouca gente, o próprio Ibama tira todo mundo. Mas quando tem 400, 500 pessoas, é diferente.”

— Quando o povo entra, mas com pouca gente, o próprio Ibama tira todo mundo. Mas quando tem 400, 500 pessoas, é diferente. Eles (autoridades) foram lá e voltaram pra trás porque saiu da capacidade deles de remover as pessoas. A terra só é passada ao povo quando ele já tomou conta — explicou, por telefone, Humberto Pereira, que além de youtuber de invasão diz atuar como “trader” no mercado de ações.

O sonho da terra própria sobre as florestas de Jacundá foi o que moveu Raquel Werneck, 55, a se mudar com os dois filhos e uma sobrinha para a invasão em março. A vida ali é precária. Seu barraco de madeira e lona fica à esquerda de um templo evangélico improvisado. Os banheiros são buracos feitos na mata cercados por lona preta e azul. A água é de poço e a comida é feita em uma grande “cantina” comunitária. Raquel e a filha Shalon, de 15 anos, são fãs de Bolsonaro e têm camisas com o rosto do presidente.

— Se alguém falar do PT aqui, a gente manda no quartel da direção porque eles são Bolsonaro também. No culto aqui, a irmandade ora pelo Bolsonaro para ele proteger a gente — contou, esperançosa que um dia o governo regularize a invasão.

Raquel Werneck, com camisa branca de Bolsonaro, e família. Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo.
Raquel Werneck, com camisa branca de Bolsonaro, e família. Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo.

Satélites espalhados pela órbita do planeta mostram que o que acontece na Floresta Nacional de Jacundá não é um caso isolado. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento na Amazônia cresceu 46% nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro em relação ao período entre 2017 e 2018, chegando a mais de 21 mil km2, o maior número da década para um biênio. Caso tivesse ocorrido na Região Sudeste do país, a área destruída ocuparia uma mancha grande o bastante para unir os municípios do Rio e São Paulo (veja no mapa abaixo).

 

 

As taxas de desmatamento em unidades de conservação durante os dois primeiros anos do governo Bolsonaro e da gestão de Salles no Meio Ambiente pularam 62% em relação aos dois anos anteriores. Nas terras indígenas, o aumento foi ainda maior: 150%. Quem tinha esperança que a situação poderia melhorar neste ano tomou um balde de água fria na sexta-feira, 4, quando o Inpe divulgou que em maio o desmatamento cresceu 40% em relação ao mesmo mês do ano passado. Na Amazônia, o comentário é que 2021 será pior que 2020.

Para a procuradora da República Ana Carolina Haulic Bragança, ex-coordenadora da Força Tarefa Amazônia do Ministério Público Federal (MPF), há causa e efeito entre o que diz o governo e o aumento do desmatamento.

— Esse impacto do discurso é sensível nas comunidades do interior da Amazônia. Isso incentiva as invasões e as pessoas se aventuram e, às vezes, são até presas invadindo unidades de conservação — afirmou.

Pereira, o “youtuber” que abre essa reportagem, parece feliz com o aumento do número de pessoas dispostas a invadir a floresta. Uma fonte ouvida pela reportagem conta que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) tomou conhecimento da invasão da Floresta Nacional do Jacundá em fevereiro e tentou entrar na área, mas foi impedida pelos seguranças e invasores. Como ficará mais claro mais adiante, o simples fato de uma equipe de um órgão ambiental federal ter chegado à área faz da Jacundá uma exceção.

Cadê os fiscais?

Operação da PF e da PM Ambiental em madeireira na BR-319, próximo a cidade de Realidade. Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo.
Operação da PF e da PM Ambiental em madeireira na BR-319, próximo a cidade de Realidade. Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo.

O relógio  marcava 8 horas, da quinta-feira, 27 de maio, quando cinco homens e uma mulher portando fuzis e capuzes saíram do hotel Lakazita, na comunidade conhecida como Realidade, próxima a Humaitá, no sul do Amazonas. Em caminhonetes 4X4, eles tinham como missão fiscalizar madeireiras. Quem está acostumado com o dia a dia do combate aos crimes ambientais na Amazônia rapidamente sente uma ausência: onde estão os fiscais do Ibama? Ao longo de seis dias percorrendo quase dois mil quilômetros em Rondônia e no Amazonas, em alguns dos principais “hotspots” da região, a reportagem só se se deparou com uma viatura do órgão.

Não podia ser diferente. O número de agentes do Ibama aptos a realizar fiscalizações ambientais em todo país caiu de 780 em 2018, último ano do governo Temer, para os atuais 660. No ICMBio, a queda também foi sentida: saiu de 979 em 2018 para 833. Pedidos para a realização de concursos para reposição foram feitos durante a gestão de Salles, mas não foram autorizados até o momento. Os dados materializam uma segunda “boiada” na gestão do ministro: o desmonte dos órgãos de controle ambiental.

— Há um dolo nessa desestruturação toda. É a facilitação de atividades econômica sem a devida atenção para o meio ambiente — afirmou a procuradora Ana Carolina Haulic Bragança.

A desestruturação não afetou apenas o número de agentes, mas os recursos destinados ao combate aos crimes ambientais na Amazônia.

Nos dois primeiros anos de Salles no governo, o ministério gastou R$ 229 milhões nas duas principais ações orçamentárias focadas em combater desmatamento e incêndios florestais. No biênio anterior, ainda no governo de Michel Temer (MDB), o volume gasto foi de R$ 256 milhões.

 

 

Diante desse quadro, o número de multas aplicadas pelo Ibama em operações na Amazônia caiu 44% nos dois primeiros anos da gestão Salles em relação aos anos de 2018 e 2017. O valor saiu de R$ 3 bilhões em 2019 para R$ 1,3 bilhão no ano passado (alguém aí ouviu o mugido da boiada passando?).

Caminhão carregado de bois atravessa o rio Aripuanã em uma balsa em direção a Apuí, no Sul do Amazonas. Áreas de floresta da região estão sendo desmatadas e dando lugar a pastagens para alimentar o gado. Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo.
Caminhão carregado de bois atravessa o rio Aripuanã em uma balsa em direção a Apuí, no Sul do Amazonas. Áreas de floresta da região estão sendo desmatadas e dando lugar a pastagens para alimentar o gado. Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo.

Em  Humaitá (AM), a situação é particularmente crítica. O município fica no entroncamento das BRs 319 e 230. Cortada pelo rio Madeira, o município enfrenta, a um só tempo, as ameaças do avanço do agronegócio, da indústria madeireira e do garimpo ilegal. Não por acaso, a cidade tem dentro de si um verdadeiro “monumento” ao desmonte dos órgãos de controle ambiental.

Em 2017, um grupo de garimpeiros invadiu a cidade e incendiou as sedes do Ibama e ICMBio. Foi um recado claro de quem mandava na região.

Quatro anos depois, Ibama e ICMBio continuam não tendo instalações no município. Onde funcionava a do ICMBio hoje existe uma casa. E onde ficava a do Ibama restam apenas ruínas. Ironicamente, enquanto 197 quilômetros quadrados de floresta em Humaitá eram derrubados entre 2019 e 2020, árvores engoliam o que sobrou da construção do Ibama.

Cacique Nilcelio Jiarrui em frente ao prédio do Ibama em Humaitá, que foi destruído pelos madeireiros e garimpeiros. Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo.
Cacique Nilcelio Jiarrui em frente ao prédio do Ibama em Humaitá, que foi destruído pelos madeireiros e garimpeiros. Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo.

— Ultimamente, a gente vem passando por muitas pressões. Há muitos ilícitos de madeireiros e posseiros que invadem a nossa terra para retirar madeira e é difícil atuar nessa frente de proteção porque os próprios órgãos ambientais estão sucateados. — disse o indígena Nilcélio Jiahui, que vive na Terra Indígena Jiahui, em Humaitá.

Dioneia Ferreira nasceu em Humaitá e conseguiu se formar em Economia com o auxílio da mãe costureira. Há mais de 20 anos, apoia a causa ambiental.

Dionéia Ferreira, ativista e pesquisadora da proteção da Mata Atlântica e contra os desmatamentos da região. Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo.
Dionéia Ferreira, ativista e pesquisadora da proteção da Mata Atlântica e contra os desmatamentos da região. Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo.

— O desmatador saiu do armário porque temos um governo que milita nessa causa. A epidemia parou muitas coisas, mas não o avanço dos desmatadores — concluiu ela.

Toras na beira da Transamazônica

No final de maio, com a trégua das chuvas, uma cena chamava atenção de quem cruzava a Terra Indígena Tenharim-Marmelos, no município de Humaitá, no sul do Amazonas, pela rodovia conhecida como Transamazônica. Havia dezenas de toras de madeira nobre deixadas às margens da estrada. Não muito longe dali seguindo a estrada, no distrito de Santo Antônio do Matupi (município de Manicoré), a 391 quilômetros de Porto Velho, o funcionário de um restaurante revelou, com naturalidade, o “segredo” das toras.

— Os caminhões só vão começar a trabalhar de noite. Do quarto do hotel, vocês vão ouvir o barulho deles chegando até de madrugada — disse sem saber que falava com repórteres.

Dito e feito. Por volta das 21h, os primeiros começaram a chegar. Lentos, um atrás do outro, eles foram levando as madeiras embora. A escolha do horário noturno para a empreitada não tem relação com a oferta local de mão de obra.

A região conta com gente disposta a trabalhar dia e noite. A questão é que madeireiras do entorno estão proibidas de operar. Aparentemente, a opção pela escuridão é para burlar uma eventual fiscalização, mas, mesmo no breu da Transamazônica, só não vê quem não quer.

O vai e vem constante dos caminhões toreiros ilegais em Santo Antônio do Matupi são um sintoma de algo maior. Desde o início da gestão de Ricardo Salles, o governo, principalmente por meio do Ibama, afrouxou regras de fiscalização do comércio da madeira nativa da Amazônia.

A primeira medida foi tomada ainda em 2019 quando o então presidente do Ibama Eduardo Bim assinou uma portaria que determinava que serrarias flagradas com madeira sem procedência garantida só poderiam ser multadas se os fiscais comprovassem que houve dolo do dono da empresa em receber madeira ilegal. Procurados à época, nem Bim tampouco o Ibama se manifestaram sobre o assunto.

A segunda medida foi a mais polêmica de todas. Em fevereiro de 2020, Bim se reuniu com madeireiros do Pará e, após o encontro, assinou um despacho que tirou a obrigatoriedade de que cargas de madeira da Amazônia para exportação fossem submetidas a uma última inspeção física antes do embarque. O despacho contrariou pareceres da equipe técnica. O temor é de que a medida fragilizasse o já precário controle sobre o comércio de madeiras da região. A medida soou tão escandalosa que as autoridades ambientais norte-americanas se recusaram a receber cargas de madeira que deixaram o Brasil sem essa última inspeção e procuraram autoridades como a PF, que passou a investigar o caso.

Em maio deste ano, Eduardo Bim e outros funcionários do Ibama foram afastados dos cargos a pedido da Polícia Federal durante a Operação Akuandaba, que investiga a participação de Salles, Bim e outros servidores do Ibama na alteração das normas de controle da industria madeireira em todo o Brasil.

Caminhões transportam madeira na parte da noite. Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo.
Caminhões transportam madeira na parte da noite. Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo.

De volta à estrada, Santo Antônio do Matupi é um dos principais polos madeireiros do estado que, nos últimos anos, passou a figurar entre as regiões que mais concentram desmatamento na Amazônia.  O lugar de aproximadamente 10 mil habitantes conta com uma escola pública com direito a ginásio de esportes, posto de saúde e uma base da Polícia Militar, mas nenhuma base fixa ou móvel do Ibama ou ICMBio.

O diretor-executivo do Sindicato de Madeireiras do Estado do Amazonas (Sindmad-AM), Sérgio Amed, não esconde o jogo. Ele critica o ex-superintendente da PF no Amazonas Alexandre Saraiva, a quem acusa de ter implantado um regime de “terror” na região depois que deflagrou duas das maiores operações de combate ao desmatamento ilegal do país: a Arquimedes e a Handroanthus. Tudo isso antes de ser exonerado um dia depois de enviar uma notícia-crime acusando Salles de atuar em favor dos madeireiros.

— Essa madeira vai, sim, abastecer empreendimentos ilegais, não licenciados. Essa madeira vai tanto para o mercado interno quanto para o externo — disse Amed que, se de um lado, é só críticas para Saraiva, por outro é só elogios a Salles.

— O Salles é a primeira pessoa que se dispôs a olhar para as coisas como elas são e não como elas deveriam ser. É a primeira pessoa no ministério que decidiu olhar para o nosso setor  — completou.

Salles é investigado em dois inquéritos atualmente. Em um deles, na Operação Akuandaba, uma das linhas de investigação tenta descobrir se o ministro e membros de sua equipe teriam recebido vantagens para facilitar a vida das madeireiras. O outro inquérito é conduzido pela Procuradoria Geral da República (PGR) e foi aberto com autorização de Cármen Lúcia, ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), na quarta-feira, 2. A base do pedido é, justamente, a notícia-crime enviada por Saraiva. Salles e os demais suspeitos negam quaisquer irregularidades.

A reportagem enviou questionamentos ao Ministério do Meio Ambiente, ICMBio, Ibama, Presidência da República e Vice-presidência da República, que comanda o Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL), mas nenhuma resposta foi recebida até o fechamento desta edição. O YouTube disse que espera denúncias para avaliar se os materiais veiculados respeitam suas normas. Enquanto isso, o som da motosserra em Jacundá não para.

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