A repercussão causada pelo caso de violência sexual envolvendo uma influenciadora digital de Santa Catarina motivou um grupo de deputadas a propor a criação da Lei Mariana Ferrer, que prevê punição para o que chamam de “violência institucional” sofrida por vítimas de estupro. Ao menos dois projetos foram apresentados na Câmara. Em um deles, há a previsão de detenção por até um ano do agente público que não zelar pela integridade física e psicológica da vítima.
As propostas foram protocoladas anteontem, após a divulgação de vídeo de audiência judicial em que a influenciadora digital Mariana Ferrer, de 23 anos, é humilhada pelo defensor do homem que ela acusa de estuprá-la – o empresário André Camargo Aranha. Nas imagens da sessão, divulgadas pelo site “The Intercept Brasil”, o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho diz a ela: “Jamais teria uma filha do teu nível e também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você”.
A íntegra do vídeo mostra que o defensor foi ríspido com a jovem em outras ocasiões além das já divulgadas. Gastão a chama de “mentirosa” e diz que vai prosseguir sua fala “antes que comece a choradeira”. O juiz Rudson Marcos o repreende em poucos momentos. Na audiência, o advogado também exibiu fotos sensuais feitas pela jovem antes do episódio, sem qualquer relação com o suposto crime, e a chama de “mentirosa”. Apesar das intimidações e dos apelos de Mariana para que fosse respeitada, o juiz não intercede.
“Excelentíssimo, estou implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”, diz ela na sessão.
Aranha foi inocentado pelo magistrado, que entendeu não haver provas suficientes para comprovar o crime. Assinado por 26 deputados, um dos projetos determina que nos julgamentos sobre crimes contra a dignidade sexual, caberá ao juiz garantir a integridade da vítima, sob pena ser responsabilizado. A proposta tem como autora a deputada Lídice da Mata (PSB-BA).
“Casos como o de Mariana Ferrer certamente podem fazer com que outras vítimas se sintam desestimuladas a denunciar seus agressores por receio de não encontrarem o apoio necessário das autoridades que deveriam protegê-las”, justifica a parlamentar. “A posição de paralisia do juiz e do promotor é o que choca todo mundo e a humilhação total dela”.
Outra proposta, de autoria das deputadas Soraya Santos (PL-RJ), Flávia Arruda (PL-DF) e Margarete Coelho (PP-PI), vai além e prevê a criminalização de condutas como a observada no julgamento de Mariana Ferrer.
“É inconcebível que os agentes públicos, operadores do Direito, não tenham em momento algum utilizado de suas posições para coibir a atitude inaceitável da defesa. A Justiça deve ser um local de acolhimento da vítima, buscando a punição correta e justa para cada crime cometido”, diz texto do projeto, que altera a Lei de Abuso da Autoridade.
Também na esteira do caso, o deputado Guiga Peixoto (PSL-SP) apresentou duas propostas. Uma para estabelecer a imprescritibilidade, ou seja, que não tenham prazo de validade para serem punidos, dos crimes de estupro de vulnerável no Código Penal e outra para elevar a pena para estupradores.
Anulação
Além dos projetos, a senadora Rose de Freitas (Podemos-ES) prepara representação ao Ministério Público para tentar anular a sentença do juiz Rudson Marcos. Ele é alvo de procedimento disciplinar no Conselho Nacional de Justiça.
“Estamos preparando uma peça bem fundamentada e devemos protocolar até amanhã”, disse a senadora.
Juristas, porém, disseram ao Estadão que a conduta do advogado deve ser investigada administrativamente, mas dificilmente resultaria em anulação de sentença.
Especialistas veem iniciativa com ressalvas
Especialistas apontaram ressalvas sobre a necessidade de novas previsões legislativas e a eficácia que teriam tais medidas. Eles ponderaram que atualmente já há previsões capazes de punir transgressões no curso de audiências judiciais. Isso cabe principalmente às áreas de correição de órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
As três entidades iniciaram procedimentos no caso do julgamento do empresário André de Camargo Aranha. A advogada e idealizadora da iniciativa contra o assédio sexual Me Too Brasil, Marina Ganzarolli, disse “discordar frontalmente” do caminho sugerido pelos deputados.
“A ineficácia da resposta do Estado e do Judiciário à violência sexual não está no desenho legislativo. A nossa legislação é excelente na proteção dos direitos humanos das mulheres e meninas. A Lei Maria da Penha é um exemplo disso, assim como as alterações recentemente promovidas, com a nova previsão do crime de importunação sexual”, disse.
Para ela, o controle externo sobre a atuação dos advogados, promotores e juízes precisa ser aperfeiçoado, “garantindo a sensibilização de gênero”.
“Quem está exercendo de fato esse controle? Não é por ausência de súmula ou provimento. Os órgãos estão punindo? É necessária a aplicação dos procedimentos disciplinares”, acrescentou Marina.
A opinião é compartilhada pelo advogado Luiz Flávio Borges D’Urso, doutor em direito penal pela Faculdade de Direito da USP e ex-presidente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
“A forma de coibir episódios horrorosos como o que aconteceu é pela legislação que já temos, pelos mecanismos já existentes, especialmente os correcionais, com a devida apuração ética.”
Ele disse ser desnecessário qualquer iniciativa legislativa pra regrar isso. “É uma iniciativa midiática que vem num momento em que os holofotes estão nesse tema”.
A promotora do Ministério Público de São Paulo Sílvia Chakian disse que não há como “recorrer sistematicamente ao Direito Penal para buscar novas figuras típicas toda vez que comportamentos reprováveis, antiéticos ou mesmo imorais acontecem, porque não terá fim”.
“O Direito Penal jamais dará conta de toda essa demanda. Comportamentos reveladores de violência institucional podem ser desde já punidos, a depender de cada caso, não só na esfera penal mas também civil e administrativa, correicional. Esse tipo de criminalização não se presta a mudar efetivamente a cultura jurídica ainda tão patriarcal que é reflexo da nossa própria sociedade, que ainda julga mulheres vítimas de violência . É essa cultura que precisa ser modificada, porque inaceitável nos dias atuais”.