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Da Amazônia aos Alpes: parte do ouro brasileiro na Suíça pode ter origem ilegal

No ano passado, cerca de US$ 1,2 bilhão em ouro foi exportado do Brasil para a Suíça, tornando-se o segundo maior mercado de exportação de ouro do país, depois do Canadá. Cerca de um quinto do metal é proveniente da Amazônia, segundo dados oficiais.
Garimpeiro pesa pepita de ouro em Rondônia. Foto: Fabio Nascimento.

A mineração ilegal em áreas protegidas na Amazônia brasileira quintuplicou desde 2010, uma corrida do ouro impulsionada em grande parte pelo aumento dos preços nos mercados internacionais. Ao longo do ano passado, 25,4 toneladas do metal precioso, no valor estimado de US$ 1,2 bilhão foram exportadas do Brasil para a Suíça, tornando-se o segundo maior mercado de exportação de ouro do país, depois do Canadá. Cerca de um quinto desse ouro é proveniente da Amazônia, segundo dados oficiais.

As informações são da Mongabay. Conforme a reportagem, a corrida resultante para explorar o ouro amazônico teve impactos devastadores sobre povos indígenas, como os Kayapó, Munduruku e Yanomami, que vivem em reservas nos estados do Pará e Roraima intensamente minadas por garimpeiros, ou mineiros ilegais. A corrida do ouro está ligada ao aumento da poluição, desmatamento e intensificação de crimes violentos.

Entre 2019 e 2020, estima-se que cerca de 100 toneladas de mercúrio tenham sido despejadas na Bacia Amazônica por garimpeiros ilegais. A substância, que contamina a água e os peixes consumidos pelos povos amazônicos, afeta o sistema nervoso central, mas também pode atingir os rins e o fígado. De acordo com o Observatório do Mercúrio, um grupo de monitoramento de poluição, isso também pode atravessar a barreira placentária, contaminando o feto. Os sintomas de envenenamento por mercúrio variam de visão prejudicada e atrofia muscular a distúrbios psicológicos e, em casos extremos, pode levar a condições com risco de vida, como câncer e doenças cardíacas.

Exemplos dos impactos da corrida do ouro não são difíceis de encontrar. Na Terra Indígena Sawré Muybu, no estado do Pará, onde vivem os Munduruku, toda a população de três aldeias foram contaminadas por mercúrio, e 60% apresentaram níveis da substância acima do limite de segurança reconhecido pela Organização Mundial da Saúde.

Na Terra Indígena Munduruku, também no Pará, a contaminação por mercúrio tem sido acompanhada por uma escalada da violência, que atingiu o ápice em março passado quando garimpeiros, equipados com maquinário pesado, armas e até um helicóptero, incendiaram casas Munduruku e atacaram um ônibus que transportava líderes comunitários. O território fica ao lado da rodovia Transamazônica, na Bacia do Tapajós, a região brasileira mais afetada pela mineração ilegal de ouro.

Mas o problema se espalhou para muitas outras partes da Amazônia também. Na Terra Indígena Yanomami, a maior reserva indígena do país, no estado de Roraima, há quase tantos garimpeiros quanto indígenas, de acordo com estimativas recentes.

“Eles estão vindo pelo rio, pelas estradas e pelo ar. Há mais de cem aviões e helicópteros sobrevoando nosso território todos os dias”, disse Hekurari Yanomami, que chefia o conselho comunitário responsável por supervisionar a assistência à saúde indígena na reserva Yanomami, logo após duas crianças indígenas morrerem em um acidente envolvendo uma draga operada por garimpeiros ilegais.

O território também abriga outros sete grupos indígenas, seis dos quais vivem em isolamento voluntário do mundo exterior. Durante a pandemia de coronavírus, garimpeiros ilegais também se tornam vetor de transmissão para essas comunidades.

Nem toda mineração artesanal é ilegal. A mineração de pequena escala no Brasil geralmente desfruta de regulamentações ambientais mais flexíveis devido aos seus supostos impactos marginais. Na prática, porém, muitos garimpeiros se organizam em estruturas corporativas cujos impactos ambientais são comparáveis aos de grandes mineradoras.

“Quando pensamos em garimpeiro, imaginamos alguém que atua de forma muito rudimentar, sem equipamentos, sem estrutura. Mas hoje, ela foi subvertida em algumas empresas reais, com ampla estrutura e impacto, e que exigem regulamentação mais rígida”, disse Gustavo Kenner Alcântara, procurador da República no Pará.

As regras já relaxadas estão definidas para se tornarem ainda mais frouxas com a aprovação de um novo projeto de lei de mineração, que atualmente está tramitando no Congresso brasileiro. Se aprovada, a nova lei isentará do licenciamento ambiental os projetos que não apresentem risco de “impactos significativos”. Os pedidos de licenças mineiras que aguardam aprovação há mais de um ano também serão automaticamente aprovados pela Agência Nacional de Mineração.

Mineração ilegal dentro da Terra Indígena Munduruku, no sudoeste do Pará, em setembro de 2019. Foto: Christian Braga/InfoAmazonia.

A conexão suíça

Ao contrário de muitos produtos agrícolas que são produzidos no Brasil e comercializados na Suíça apenas em papel, o ouro é importado fisicamente para a Suíça em grandes quantidades e processado principalmente nas refinarias em Ticino, no sul do país, perto da fronteira italiana. Lá, o ouro é derretido em altas temperaturas para remover as impurezas, produzindo milhares de barras de ouro por ano.

Refinarias de ouro suíças, como MKS PAMP, Metalor, Valcambi e Argor-Heraeus, que estão entre as maiores do mundo, processam grande parte do ouro extraído em todo o mundo. Devido à prevalência da mineração e comércio ilegal de ouro, é difícil calcular exatamente quanto da oferta mundial de ouro é refinado na Suíça. O Conselho Federal Suíço estima que mais de dois terços do ouro comercializado em todo o mundo passa pelo país, embora sua participação no mercado de ouro refinado seja menor.

“As refinarias suíças afirmam que processam apenas 13% do ouro extraído em todo o mundo”, diz Christoph Wiedmer, codiretor da ONG suíça Society for Threatened Peoples, que monitora o comércio global de ouro. “No entanto, é certo que esse número é muito maior devido a fontes indiretas. No entanto, devido à absurda falta de transparência no negócio do ouro, os números exatos não são verificáveis”.

Existem várias razões pelas quais a Suíça é um mercado tão significativo para o refino de ouro. A indústria relojoeira do país é um cliente importante e, até a década de 1990, as quatro grandes refinarias pertenciam aos principais bancos do país, que subscreveram compras e vendas. Além disso, a indústria de joias do norte da Itália tem impulsionado historicamente a demanda.

No início da década de 1980, quando o Brasil intensificou a produção de ouro para evitar crises financeiras, o Conselho Federal Suíço tornou secretos os detalhes das estatísticas do comércio de ouro. Apenas os valores totais de importação e exportação precisaram ser divulgados. A falta de dados comerciais na década de 1980 significou que as refinarias suíças foram capazes de subverter o boicote ao regime do apartheid na África do Sul, então o maior exportador de ouro do mundo. A partir de 2021, estatísticas de importação e exportação por país estão sendo publicadas novamente, mas quaisquer informações sobre regiões ou minas de origem permanecem desconhecidas.

A transparência continua deficiente e os riscos resultantes são altos. Ao importar ouro brasileiro, a Suíça está se colocando em perigosa proximidade com as violações ambientais e sociais que surgem, especialmente da mineração ilegal na Amazônia, segundo especialistas. A linha entre a mineração de ouro legal e ilegal é muitas vezes confusa, e os investidores suíços também estão expostos a perdas potenciais por meio de participações em empresas de mineração que operam na Amazônia.

Lavagem de ouro

A cada ano, acredita-se que dezenas de toneladas de ouro ilegal são inseridas no mercado legal por operadores de mineração ilícitos. Por algumas estimativas, o mercado ilegal de ouro brasileiro é quase um terço do total das exportações, embora a natureza do comércio ilícito dificulte a medição e o número real possa ser maior.

Para onde vai todo esse ouro ilegal? “Não conseguimos identificar com precisão de onde veio o ouro, para onde foi, quem está comprando e quem está vendendo”, diz o procurador Alcântara, acrescentando que não existe um sistema de faturamento eletrônico de ouro no Brasil. “Não faz sentido que uma mercadoria tão valiosa como o ouro seja até hoje vendida com faturas manuscritas. Qualquer comprador internacional de ouro brasileiro corre o risco de comprar ouro ilegal, mesmo que seja de uma empresa regularizada”.

Alcântara sabe uma coisa ou outra sobre o mercado ilegal de ouro, tendo processado casos na maior repressão a operadores ilícitos do país, uma operação conhecida como Dilema de Midas, uma brincadeira com a lenda do Rei Midas, cuja insensatez e ganância transformaram em ouro tudo o que tocava. As operações do Dilema de Midas descobriram um esquema para comprar 611 quilos de ouro de fontes ilegais no Pará que haviam sido lavados e declarados legais.

Os mesmos métodos de lavagem de ouro foram usados por uma organização criminosa desmantelada em outubro, que estava retirando cerca de 1 tonelada de ouro por ano das terras indígenas do sul do Pará. Somente da Terra Indígena Kayapó, a polícia estima que os garimpeiros estavam retirando 18 kg de ouro por mês, uma receita bruta de 5,4 milhões de reais (cerca de US$ 996.000).

“É tão fácil. Eu tenho ouro ilegal e tenho alguém que tem uma mina legal. Nem preciso de autorização dessa pessoa, eu simplesmente declaro que o ouro veio de lá e que é legal”, disse Gustavo Caminoto Geiser, especialista em crimes da Polícia Federal.

“O sistema atual não tem nenhum tipo de verificação ou bloqueio. É autodeclaratório. A lei prevê expressamente que o comprador tem o dever de acreditar na declaração do vendedor e no que está em seus papéis”, acrescentou.

Muitos especialistas em mineração no Brasil culpam agências estaduais, incluindo a Agência Nacional de Mineração (ANM), pela facilidade com que os criminosos podem explorar o sistema. “Não há financiamento. A ANM tem poucos funcionários e eles não conseguem lidar com isso. O IBAMA [agência federal de proteção ao meio ambiente] e a Polícia Federal também não conseguem combater toda a atividade ilegal que está acontecendo”, explica Larissa Rodrigues, do Instituto Escolhas, monitora de sustentabilidade econômica brasileira.

O policial federal Geiser disse que a falta de controle estatal sobre as operações ilegais de mineração de ouro se tornou tão grave que ele acredita que a maior parte do ouro que sai do Brasil está contaminada com ilegalidade. “Como é tão fácil de lavar, tenho certeza de que a maior parte é lavada”, contou.

Os dados oficiais, no entanto, fornecem algumas informações sobre a escala da lavagem de ouro. Em 2020, dados preliminares da ANM mostraram que o Brasil produziu 62 toneladas de ouro, mas o Ministério do Comércio Exterior registrou 98 toneladas de ouro exportado naquele ano.

O Escritório Federal Suíço de Alfândega e Segurança de Fronteiras não fornece dados sobre as minas de origem ou expedidores para importações na Suíça, nem há qualquer mecanismo legal para solicitar informações sobre importações de países terceiros, como o centro de comércio de ouro de Dubai. A Secretaria de Estado para Assuntos Econômicos (SECO) do país disse à Mongabay: “A SECO está em contato regular com as refinarias suíças, mas não monitora suas atividades”.

Das quatro principais refinarias suíças contatadas pela Mongabay para comentar, apenas a MKS PAMP negou o fornecimento de ouro da Amazônia, mas não revelou a origem de suas importações de ouro. A Metalor e a Valcambi se recusaram a divulgar a origem de suas importações brasileiras de ouro, enquanto a Argor-Heraeus se negou a responder a perguntas.

As refinarias de ouro suíças estiveram no centro de vários escândalos nos últimos anos em relação ao comércio de ouro. Em 2020, a Swissaid, uma instituição de caridade de desenvolvimento, descobriu que a empresa dos Emirados Árabes Unidos Kaloti Jewellery Group foi usada por vários refinadores, incluindo a Valcambi, para obter ouro de países onde o comércio alimenta conflitos e corrupção. A Kaloti já havia sido ligada às exportações ilícitas de ouro do Brasil e foi objeto de Investigação do Departamento do Tesouro dos EUA, sendo desativada por temores de irritar os governantes dos Emirados Árabes Unidos. Apesar de casos como a Kaloti, as refinarias suíças continuaram comprando ouro dos Emirados Árabes Unidos, obtendo cerca de US$ 8 bilhões do metal precioso por essa rota em 2020.

Não há dados disponíveis sobre se o ouro da Amazônia está entrando nas refinarias suíças por meio de empresas dos Emirados Árabes Unidos, embora a natureza da lavagem de ouro no Brasil e internacionalmente signifique que tal cenário não possa ser descartado.

Tanto a MKS PAMP quanto a Metalor negam ter qualquer relação comercial com fornecedores dos Emirados Árabes Unidos. A Metalor disse que isso aconteceu porque “não pode garantir a origem do ouro”. Valcambi e Argor-Heraeus se recusaram a responder a perguntas sobre se abastecem ouro por meio de fornecedores dos Emirados Árabes Unidos.

Legalização da questão

Além da lavagem de ouro, há outra maneira de transformar ouro extraído ilegalmente em ouro legal e, assim, torná-lo aceitável para as refinarias suíças: legalizar os locais de mineração ilegal de ouro. Isso é algo que o presidente Jair Bolsonaro, cujo pai trabalhava como garimpeiro e ele próprio garimpou ouro, está tentando fazer enviando ao Congresso um projeto de lei para legalizar a mineração dentro de reservas indígenas.

Ao lado do desmantelamento de órgãos de fiscalização ambiental e o elevado aumento do preço do ouro, a proposta de Bolsonaro é vista por especialistas como um dos principais impulsionadores da atual corrida do ouro na Amazônia.

Em 2019, primeiro ano completo da presidência de Bolsonaro, a área de desmatamento relacionado à mineração aumentou mais de 150% em relação ao ano anterior, atingindo mais de 22.000 hectares, uma área semelhante à perdida em 2020. “Com o incentivo do governo para legalizar os garimpos [minas ilegais] e até mesmo para regular essa atividade nas reservas indígenas, tem havido um claro estímulo a essas iniciativas. Desde 2019, a mineração ilegal aumentou substancialmente”, disse Alcântara, procurador da República, à Mongabay.

Deforestation by year from mining between August 2016 and July 2021 in the Brazilian Amazon according to INPE.
Desmatamento por ano de mineração entre agosto de 2016 e julho de 2021 na Amazônia brasileira de acordo com o Inpe.

A expectativa em torno do projeto de lei de Bolsonaro também gerou um aumento de pedidos de mineração legal dentro das reservas indígenas. Embora isso possa parecer contraintuitivo, como a ANM bloqueia a maioria dessas solicitações, esses pedidos inativos podem funcionar como reservas para futuras licenças de mineração que podem ser ativadas se as novas leis de mineração forem aprovadas, segundo especialistas.

“Essas áreas dentro de terras indígenas estão sendo requisitadas quase como uma futura reserva de mercado, apostando na aprovação do projeto de Bolsonaro”, comenta Rodrigues, do Instituto Escolhas. Em alguns casos, os mineradores até recebem permissão para realizar pesquisas preliminares sobre extração mineral nas áreas em que solicitam essas licenças. Acredita-se que cerca de 2,4 milhões de hectares tenham recebido sinal verde para pesquisa dessa forma desde que Bolsonaro foi eleito no final de 2018. “O setor de mineração brasileiro é como o Velho Oeste. Quem chega primeiro e faz a solicitação de uma área, pega e depois ninguém mais tem acesso”, acrescenta Rodrigues.

Megamina tem patrocinadores suíços

Apesar da crescente evidência de sérios impactos negativos da nova corrida do ouro no Brasil, novas oportunidades como a megamina de Volta Grande mostram que os investidores suíços não se intimidam.

No Rio Xingu, no estado do Pará, será construída a maior mina de ouro brasileira a céu aberto, planejada pela empresa canadense Belo Sun Mining, que tem como principais acionistas a gestora de investimentos Konwave AG, com sede em Herisau, na Suíça.

A construção da mina Volta Grande na Bacia do Rio Xingu, já enfrentando os impactos da hidrelétrica de Belo Monte, pode expor o rio a “consequências catastróficas semelhantes às do desastre do Rio Doce”, de acordo com pesquisadores. Nesse incidente, em 2015, uma barragem de rejeitos de uma mina de minério de ferro desabou, matando 19 pessoas e contaminando uma área de até 650 quilômetros rio abaixo com lodo tóxico.

A mina de Volta Grande operará a poucos quilômetros de duas comunidades indígenas, que temem a contaminação dos rios por metais pesados e cianetos, gerando críticas de organizações indígenas e do Ministério Público Federal.

“Há tantos sinais de alerta surgindo aqui, que nem consigo mais contá-los”, James Bosworth, gerente de risco político da consultoria Hxagon, disse à CBC no ano passado.

Em 18 de dezembro de 2021, o Ministério Público Federal recomendou ao governo do Pará a suspensão de todos os processos de licenciamento ambiental para obras ou atividades de “grande impacto” na região da Volta Grande do Xingu, incluindo o projeto de mineração da Belo Sun.

“Não há estudos que avaliem que proporções os impactos da hidrelétrica podem tomar associados aos impactos de um projeto de mineração em Volta Grande”, informou em um comunicado.

A Mongabay perguntou à Konwave se planeja usar seus direitos de voto ou vender suas ações para se opor ao projeto da Belo Sun Mining. A Konwave disse que venderia a posição completamente se o projeto de mineração não fosse apoiado pela “comunidade local/partes interessadas”. No entanto, o investidor não especificou como esse apoio seria avaliado.

Alcântara, procurador da República, diz que países como a Suíça devem estar atentos ao seu papel no aumento da demanda por ouro brasileiro: “O mais sério na corrente do ouro é quem compra. A partir do momento que você compra, você incentiva esse mercado”.

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