A explosão de internações e mortes em Manaus por covid-19 nos últimos dias fez os brasileiros assistirem novamente ao caos causado pelo novo coronavírus. Apesar de a pandemia ter começado, lá no começo de 2020, por Rio de Janeiro e São Paulo, foi o Amazonas, com seu frágil serviço de saúde, a enfrentar colapso de saúde e funerário.
A pergunta inevitável para o restante do país é: isso indica que teremos uma repetição do comportamento da epidemia nos demais estados do país onde o vírus demorou mais a chegar na primeira onda?
Especialistas ouvidos por VivaBem afirmam que há, sim, semelhanças com o cenário de fevereiro do ano passado, mas com alguns agravantes como a falta de medidas de isolamento social e a nova variante circulando no país.
“A sensação que eu tenho é que está se repetindo, sim, só que com uma velocidade maior. Manaus colapsou mais rápido agora do que da primeira vez”, diz Miguel Nicolelis, cientista e presidente do Comitê Científico do Consórcio Nordeste.
Manaus e a repetição do caos
No caso de Manaus, o crescimento no número de internações e mortes chama a atenção quando comparados com a primeira onda. Na quarta-feira (6), foram 110 sepultamentos nos cemitérios da capital. Dez dias antes, esse número não era nem metade: foram 52 enterros em 28 de dezembro.
O número de pessoas que precisaram de internação seguiu o mesmo padrão: saltaram de 76 para 221 (maior número já registrado até aqui). A alta nos dois casos não encontra precedentes com o primeiro momento da pandemia.
Manaus foi a primeira cidade do país a registrar um colapso na saúde pública pela covid-19. Em 5 de abril, o então prefeito Arthur Virgílio reconheceu a calamidade e fez um apelo por ajuda em todos os níveis.
“Não podemos ver mais pessoas diariamente sacrificadas por falta de capacidade de atendimento”, disse à época.
Mas se seguir o ritmo atual, o número de mortes pode superar aqueles enfrentados no pico da primeira onda. “Se por um lado ainda não tem tantos casos confirmados, como no final de abril e início de maio, claramente temos um excesso de internações, com vários hospitais lotados, inclusive na rede privada, e também um aumento de óbitos”, afirma Felipe Naveca, virologista e pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Amazônia.
“Tudo indica que vamos viver aquele cenário catastrófico novamente.”
Os hospitais de Manaus, por sinal, estão completamente lotados e há relatos de pacientes na espera por atendimento. Na rede pública, 271 dos 289 leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) tinham pacientes na quarta-feira. Na rede privada, 194 dos 205 leitos também estavam ocupados.
Naveca está à frente de pesquisas sobre o novo coronavírus no estado e diz que ainda é impossível responder se as reinfecções ajudaram a ampliar o número de pessoas pegando —novamente— o vírus .
“Junto com a FVS [Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas] estamos investigando possíveis casos suspeitos. Mas certamente esse novo aumento de casos nos mostra que a indicação que Manaus havia chegado a um estado de imunidade de rebanho era uma afirmação desprovida de sustentação científica e que, aparentemente, fez mais mal do que bem”, pontua, citando a campanha eleitoral nas ruas como a maior culpada pela alta.
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Saúde do Amazonas informou que o estado ainda não confirmou nenhum caso de reinfecção de covid-19.
Nova variante e o imprevisível
Ana Brito, pesquisadora da Fiocruz Pernambuco e professora da UPE (Universidade de Pernambuco) na área de epidemiologia, admite que a situação do Brasil é preocupante principalmente pela falta de coordenação nas medidas de controle da circulação do vírus no país —o que fez o país nunca encerrar uma primeira onda.
“O cenário que assistimos no nosso país é extremamente dramático. Desde o início da pandemia, em nenhum momento tivemos qualquer ação ou política de estado coordenada nacionalmente e articulada nos três níveis de governo. Com ações fragmentadas, sem uma ampla campanha de saúde pública, o Brasil assiste a disseminação progressiva da transmissão do vírus em todo o seu território, resultando numa permanência de casos e óbitos em patamares elevados”, avalia.
Ela ainda lembra que a confirmação da chegada da nova variante do coronavírus no país pode agravar o cenário de forma ainda mais rápida.
“Sem uma política de enfrentamento; sem sequer apontar para um esforço de vacinação; com o esgotamento das medidas de isolamento social; e ainda sob a ameaça real de uma nova variante do Sars-CoV-2, a situação que estamos assistindo em Manaus e no Rio neste momento é apenas uma antecipação do que devemos assistir no restante dos grandes centros urbanos do Brasil, caso não se mude nada nos próximos dias”, pontua.
Nicolelis analisou também o cenário recente das demais capitais do país e viu números críticos em muitas delas.
“São Paulo, Rio, Campo Grande, Curitiba, Porto Alegre, Florianópolis estão, por exemplo, com alta muito maior que na primeira onda. No Nordeste, tirando São Luís, oito estão com tendência de crescimento, e três delas em ritmo maior que na primeira onda”, completa.
Uma diferença que ele cita da primeira onda é que os casos estão crescendo em todas regiões ao mesmo tempo.
“Essa questão é o diferencial da primeira onda. Antes você teve um escalonamento, demorou um tempão para chegar no Sul, no Centro-Oeste, no interior de Minas. Agora a transmissão comunitária está no país inteiro, é um crescimento síncrono. Por isso precisamos pensar em um lockdown nacional, como a Inglaterra fez”, pontua.
“Brasil ampliou erros”
Para Paulo Lotufo, diretor do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica da USP (Universidade de São Paulo), o crescimento no ritmo de infecções e mortes no país, como vemos em Manaus, se repete porque o Brasil não só não corrigiu, como ampliou os erros.
“Pioramos porque começou a se vender essa história de imunidade de rebanho, como se tivessem todos vacinados, e não se aceitou nenhuma medida de contenção”, diz, acreditando que a situação tende a piorar.
“No início você ainda tinha um grau de controle, um distanciamento muito maior. Agora vimos o que ocorreu no Natal, no Ano-Novo e nas eleições. Temos uma tendência muito pior do que a inicial”, afirma.
Para o especialista, apesar de assustadora, a alta era algo já esperado por quem é da área de saúde.
“As internações já estavam aumentando desde setembro, [os governos] não estavam dando a mínima para isso. Agora aconteceu o que era para acontecer. O que esperava-se era ter um repique de valores mais baixos, mas não foi isso que ocorreu”, diz.
Transmissão heterogênea
Um dos índices que medem a velocidade do avanço da pandemia é o Rt (taxa de retransmissão) do novo coronavírus. Segundo André Nunes Maranhão, do projeto Covid Analytics, criado pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), com base nos dados atuais, ainda não haveria evidências de uma segunda onda no país como um todo.
“Contudo, tem que ficar claro que a extensão brasileira faz com que a pandemia seja extremamente heterogênea. Quando fazemos, por exemplo, São Paulo e Rio de Janeiro —que são os primeiros estados que estamos trabalhando— temos uma evidência de elevação no número de casos e alguma pequena oscilação no número de mortes. O objetivo é, nos próximos dias, termos isso em todos os estados”, afirma.
Sobre a Rt, ele traz uma previsão menos pessimista. “As previsões já com os dados revisados indicam a taxa de reprodução abaixo de um, o que indica um arrefecimento da pandemia em nível nacional. Mas como existe uma heterogeneidade muito grande, é possível a existência de uma segunda onda para algum estado em particular”, explica.
Na última terça-feira (5), o Imperial College de Londres divulgou que a Rt caiu no Brasil, mas o valor atual ainda é considerado alto: 1,04. De acordo com o estudo da universidade britânica, essa taxa significa que cada 100 pessoas contaminadas transmitem a doença para outras 104. No dia 15 de dezembro, o Rt estava em 1,13.
Esse valor só deixa de ser preocupante quando está abaixo de 1. E mesmo assim é preciso monitorá-lo por um longo período, para ter certeza que não foi afetado por atraso nas notificações. Neste fim de ano, por exemplo, muitos dias não foram úteis. Feriados e recessos diminuem a quantidade de casos e mortes registrados oficialmente, por causa dos plantões em laboratórios. E portanto isso pode afetar o estudo da taxa de transmissão.
* Uol