*Da Redação do Dia a Dia Notícia
A febre por cenários de distopia na ficção não é nova, mas parece ter tido um aumento na popularidade na última década. Um dos propulsores desse subgênero certamente foi a série Black Mirror, que retornou para uma nova temporada em 15 de junho.
Os cinco novos episódios quebram um jejum de anos. A série começou a ser transmitida em 2011 e durou até 2019, quando foi interrompida na quinta temporada. Declarações à mídia feitas pelo criador Charlie Brooker dão conta de motivos variados para a pausa.
Brooker afirmou que o público não estaria disposto a dar muita atenção a uma sexta temporada de pesadelos destrutivos da sociedade retratados na série durante o traumático período da pandemia. Em outra ocasião, também declarou que a sociedade tinha superado a capacidade de roteirizar ficção pessimista.
Qualquer que seja o caso, muitos cenários e ameaças já foram retratados em todo esse tempo de transmissão da série. Os novos episódios, entretanto, abrangem também discussões éticas e sociais sobre velhas tecnologias, diferentemente de anos anteriores.
Então, quão reais e quão próximos são os perigos da tecnologia retratados na sexta temporada? Esse é o objetivo da breve análise episódio a episódio feita abaixo, que também sugere o que poderia ajudar a evitar as consequências retratadas na telinha.
A Joan é péssima
A estreia de Black Mirror multiplica os riscos da nova tecnologia de inteligência artificial gerativa pelos problemas já existentes do monitoramento e coleta de dados sensíveis.
Em “A Joan é péssima”, a protagonista passa pelo pior caso de doxxing imaginável, quando sua vida pessoal é exposta para milhões de espectadores numa série de streaming. O pesadelo só piora quando ela descobre que essa verdadeira campanha de difamação é totalmente gerada por inteligência artificial e com sua anuência, ao aceitar termos e condições de uso do serviço de streaming.
No mundo real, a capacidade de aprimoramento da inteligência artificial é rápida e impressionante. Ao aplicá-la em tarefas criativas complexas, já causa preocupação em diversas classes profissionais hoje, inclusive atores e roteiristas em Hollywood.
Esse cenário é evitável?
O cenário retratado em “Joan é péssima” ainda parece distante. Mas as discussões sobre direito de imagem e a customização de obras fictícias realistas preocupam por refletir aspectos já existentes.
Nesse sentido, é o cenário mais próximo trazido pela nova temporada. A legalidade com que os absurdos acontecem no episódio é o aspecto mais alarmante. Atualmente, dados são coletados e usados por empresas e por governos e, mesmo com limitações legais, frequentemente são abusados sem responsabilização para o prejuízo dos cidadãos.
Basta lembrar como exemplo que a VPN é ilegal em alguns países, restringindo a capacidade de aumentar privacidade e cibersegurança na internet.
Outro problema no limite da legalidade é a regulamentação de inteligências artificiais. O debate sobre o assunto progride muito mais devagar que a tecnologia, que se desenvolve de maneiras tão imprevisíveis que alarmam até os maiores especialistas no tema.
Loch Henry
Um olhar criativo sobre os populares documentários e produções de “true crime” é o que anima o segundo episódio da temporada. Um jovem casal documentarista determinado a fazer um filme sobre a natureza na Escócia muda de planos ao fazer uma parada de viagem, e decide fazer um documentário sobre um fascinante crime local.
A linguagem visual de “true crime” se mistura com a narrativa normal, o que torna ainda mais envolvente a história. A banalização da violência e a sedução perversa exercida por eventos terríveis, que tornam o gênero dos filmes de crime tão cativante, se voltam contra o casal.
Esse cenário é evitável?
A reflexão no episódio está mais na ética do uso de tecnologias já existentes há tempos do que na distopia que fez a série famosa. O gosto pelo “true crime” já existe difundido amplamente e a trama coloca em evidência como traumas pessoais e coisas delicadas como investigações policiais são muitas vezes mercantilizados sem o devido cuidado.
Nesse sentido, o cenário retratado é tão evitável quanto uma decisão temerária em qualquer questionamento ético.
Beyond the Sea
O episódio mais longo da temporada é também a peça central dela. Nele, uma dupla de astronautas embarca numa missão espacial de seis anos. Para reduzir o peso da distância e do isolamento, eles têm acesso a uma tecnologia capaz de baixar suas consciências para réplicas robóticas na Terra – com consequências indesejadas.
Esse cenário é evitável?
Um dos roteiros mais interessantes, parece representar, entretanto, uma ameaça mais distante da realidade do que outros episódios. As iniciativas de manipular eletronicamente o cérebro que mais andam em evidência, como a terapêutica controversa proposta pela Neuralink, ainda são desenvolvidas e testadas em contextos muito restritos.
Mazey Day
A busca de fotógrafos de celebridade pela reclusa atriz Mazey Day, envolvida num incidente mortal é o centro do enredo do quarto episódio da temporada, que se passa nos anos 2000. A fotógrafa protagonista exerce a profissão por necessidade e se questiona sobre a ética da busca pela atriz, em reabilitação, para cliques indiscretos – e valiosos.
Esse cenário é evitável?
Primeiramente, não é um cenário evitável porque trata de usos de tecnologia já consolidados há anos. Além disso, o tom fantasioso que o episódio assume injeta um pouco de aventura a uma reflexão social mais lamentosa do que já vivemos do que distópica. O culto às celebridades não enfraqueceu com os anos e o cotidiano diante de lentes em tempo integral se “democratizou” mesmo para cidadãos que não são figuras públicas.
Demônio 79
Assim como o episódio anterior, esse fechamento de temporada enfatiza mais a fantasia e o mito do que conflitos éticos da tecnologia. Também ambientada no passado, a trama traz uma protagonista que é informada pelo demônio precisar matar três pessoas para evitar que o mundo termine.
Esse cenário é evitável?
“Demônio 79” aponta de maneira mais gritante possível para os possíveis novos caminhos de Black Mirror, para além dos problemas da tecnologia.
Assim, o cenário retratado no episódio parece não apenas evitável, mas absolutamente irreal. Por outro lado, o que talvez não tenha volta é a guinada criativa da série, rumo a algo como o clássico Além da Imaginação.