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Beiradão, a música que vendeu mais que Roberto Carlos na Amazônia

Teixeira de Manaus, Chico Cajú e Oseas são ícones dessa música, expressão das festas do interior do Estado, em beiras de rio
Ilustração inspirada pelas capas de discos da música feita nos beiradões, no interior do Amazonas - Jairo Malta

*Folha de São Paulo

“Auê-Ra-Uê! Danço com você!”, dizem vozes entre solos de saxofone e uma base com guitarra e percussão, numa levada que lembra a lambada. Esse som, no meio do caminho entre e o instrumental e o cantado, é a marca registrada de Teixeira de Manaus, nome mais famoso dessa música dançante que se desenvolveu nos chamados “beiradões”, como são conhecidas as festas em comunidades espalhadas pelo Amazonas, nas regiões de beira de rio.

Capa do disco ‘Solista de Sax’, do saxofonista amazonense Teixeira de Manaus – Reprodução

A última canção do disco “Solista de Sax”, de Teixeira, carregava o título de “Beiradão”. Mas na virada dos anos 1970 para os 1980, quando Teixeira foi até São Bernardo do Campo para gravar nos estúdios da Copacabana –a convite do Rei do Carimbó, o paraense Pinduca–, esse termo não era usado como sinônimo de uma música específica.

Essa ideia foi amadurecendo ao longo da última década, e hoje “beiradão” extrapola seu significado tradicional. Pode ser usado para falar das festas à margens dos rios e de sua música, mas também é título de portal no YouTube e está nos nomes de bandas e cantores do Amazonas, que se apropriam da alcunha dessa expressão cultural do interior.

Uma reportagem publicada na Folha de São Paulo em 2012 relatava o último show de Teixeira, no Teatro Amazonas. O saxofonista era apresentado como o criador do “beiradão”, um “estilo de música instrumental da Amazônia, que mistura jazz, forró e ritmos caribenhos com pequenos refrões”.

Mais do que a sonoridade do interior do Amazonas pautar a imprensa paulista, o que chamava a atenção na reportagem de 2012 era o tratamento dessa cultura como um gênero musical.

“Essa reportagem cita o ‘beiradão’ como um estilo musical”, diz o pesquisador Igor Marques, que jogou luz sobre essa música amazônica em artigo no recém-lançado portal Embrazado, dedicado à cobertura da música periférica brasileira (ele prepara uma segunda parte dessa reportagem, a ser publicada nos próximos dias).

“Havia essa ideia de resgatar uma ‘raiz musical’ amazonense, e veio a Copa do Mundo de 2014. Manaus foi sede, e o pessoal queria alguma coisa para vender para os turistas. Aí começa a se falar de um estilo musical do beiradão, nesse contexto.”

Essa é a época em que surge a Orquestra de Beiradão do Amazonas, a OBA, criada em 2013 a fim de adaptar a sonoridade do beiradão à linguagem jazzística das big bands. Mas, enquanto essa música ganhava um maior reconhecimento em Manaus, nos círculos de música erudita, a cultura dos beiradões continuava a todo vapor no interior.

Segundo o etnomusicólogo Rafael Branquinho Abdala Norberto, a música de beiradão é anterior e muito mais ampla do que aquilo que chegou a ser gravado. Ele escreveu em 2016 uma importante dissertação de mestrado sobre o tema.

“Em 2009, se você colocasse Chico Cajú ou Teixeira de Manaus no YouTube, havia pouquíssimo material. Hoje, tem um monte”, ele afirma. Quando começou a estudar os beiradões, Rafael percebeu que muitos daqueles músicos haviam caído numa espécie de esquecimento fora do calendário de festas no interior.

“Estavam às margens não só da música que estava no mainstream, mas do poder público em geral. Não tinham reconhecimento da própria população. Teixeira de Manaus era dado como morto por muita gente.”

Em viagens pelo interior do Amazonas, o pesquisador buscou as origens dos beiradões. Lembrado na literatura nos anos 1950, o termo passou a se referir à música pela influência do rádio. Locutores anunciavam as festas nas comunidades chamando os locais de beiradões.

“Toda beirada de rio pode ser beiradão, então imagine, o Amazonas é o maior estado do país, com muita beira de rio ocupada. Então, deve ter uma diversidade de gêneros e instrumentos –e de como eles são tocados– que é muito grande”, afirma o pesquisador Igor Marques.

Influenciada tanto pelo balanço dos barcos –principal via de transporte do estado– quanto pelos sons que chegavam pelo rádio, a música tocada nos beiradões foi ganhando o que pesquisadores e músicos chamam de “sotaque musical”. Ou seja, os instrumentistas da região passaram a tocar lambadas, forrós, cumbias, merengues, sambas, valsas e boleros de uma maneira própria.

Na websérie documental “A Poética dos Beiradões”, o músico Eliberto Barroncas mostra as diferenças de se tocar pandeiro nos beiradões e no samba carioca, a partir de uma música do saxofonista Chico Cajú. Toda a identidade rítmica da música de beiradão está relacionada à dança –é uma música feita essencialmente para animar as danças, e não, a princípio, ser gravada.

Até o fim dos anos 1970, as formações dos grupos de beiradão eram as chamadas “lacapacas”, baseadas nos instrumentos acústicos –entre eles violino ou rabeca, sanfonas, pandeiro e outros tambores, sax e trombones, e banjos. Na década seguinte, instrumentos eletrônicos passaram a ganhar espaço, e o sax –que geralmente chegava aos músicos pelas bandas militares– se tornou a marca registrada da sonoridade dessas festas.

“Antes de Teixeira, não se tinha esse ‘sotaque’ gravado”, diz Igor Marques. “Existia uma forma de tocar que era do interior, mas a gente não teve acesso”.

O primeiro disco Teixeira saiu em 1981, abrindo espaço para toda uma geração de amazonenses que tocavam nos beiradões e conseguiram gravar suas músicas nos anos 1980 e 1990. A música de beiradão, então restrita às comunidades amazonenses, gerou uma série de músicos virtuosos e criativos, especialmente no sax e na guitarra. Teixeira, dizem, vendeu mais discos que Roberto Carlos no Amazonas e influenciou gente como Carlinhos Brown.

É dessa geração a produção fonográfica mais conhecida da música de beiradão. São os álbuns de saxofonistas como Agnaldo do Amazonas, Souza Caxias, Toinho e Seus Animais e Chico Cajú e guitarristas como Oseas e sua Guitarra Maravilhosa, Magalhães da Guitarra e André Amazonas. Hoje, é possível ouvir grande parte desses discos no YouTube.

O jeito mais acelerado de tocar lambadas no sax, e as frases curtas que tornavam aquelas canções um híbrido entre o instrumental e música cantada, foram marcas em comum dessa produção. Já os guitarristas, entre outras virtudes, levavam intervalos harmônicos comuns no sax para o instrumento de cordas –um jeito inovador de abordar a guitarra.

“Quando a gente fala de lambada, de guitarrada, é muito comum associarmos ao Pará –e com méritos. É de lá que vêm Mestre Vieira, pioneiro nisso, Aldo Sena, entre outros”, diz Marques. “Mas o Pará não é o único nessa história. É importante lembrar desses guitarristas do Amazonas, que também fizeram sucesso nacional e gravaram discos que fazem parte desse mesmo estilo, que é a guitarrada, só que com formas únicas de tocar.”

Esses músicos, muitos que continuam tocando nesse “circuito” de beiradões, venderam centenas de milhares de discos, muitos com sucesso para além do Amazonas. Em meio à onda de produções inspiradas pelos beiradões na capital na última década, como a OBA, o músico Hadail Mesquita criou em 2017 no YouTube o Portal do Beiradão. Uma de suas influências, ele diz, foi a pesquisa de Rafael Branquinho Abdala Norberto.

“Eu sou do beiradão”, diz Hadail, do Lago do Limão, uma vila no município de Iranduba, a 30 quilômetros de Manaus. “Minha casa era de frente para o rio, lá tinha um flutuante no qual meu tio tocava sax. Aqueles sopros ficaram na cabeça.”

“Ouvia muito Teixeira de Manaus, Chico Cajú. E tinha os discos em casa. Mas aquilo não era chamado de beiradão. Esses músicos dos anos 1980 não chamavam de beiradão. Com o passar do tempo, a partir ali de 2018, essa geração atual é que assumiu o beiradão como gênero –como música e identidade cultural do Amazonas.”

Hadail faz parte desta geração que reivindica o beiradão enquanto expressão musical do interior, mas com uma música bastante ligada ao forró eletrônico nordestino. Ele diz que ainda há preconceito com o estilo na capital, por se tratar de um ritmo “de periferia e do interior”, mas diz que hoje a palavra beiradão já é usada até como verbo em canções.

O teclado, marcante nessas produções contemporâneas que levam o nome de beiradão, já está incorporado em shows de veteranos –Chico Cajú, por exemplo, não toca seu sax mais com bandas numerosas, e é acompanhado também por teclados. São resultados das transformações geracionais no público que frequenta os beiradões.

Mas talvez o trabalho mais importante de Hadail seja a promoção de novos talentos e o resgate da memória da cena do beiradão. Em seu portal, ele realiza entrevistas, faz programas nos moldes da TV, disponibiliza gravações recentes de nomes consagrados e músicas antigas de difícil acesso. “O fenômeno é que as pessoas estão gravando, produzindo. Está crescendo muito nas redes sociais.”

Os beiradões são uma expressão cultural multifacetada, que envolve as danças, os encontros nas festas às margens dos rios e décadas de tradição mantidas e preservadas ainda hoje. Enquanto música, ainda não há um consenso sobre tratar o beiradão como um gênero.

Segundo Branquinho Abdala Norberto, o pesquisador, esse tipo de discussão é lateral. “Você vai ter desde as sociabilidades dos beiradões até a música que chega a uma pessoa em São Paulo. Mas, quando você escuta um disco, você não escuta o barulho do rio, os fogos quando está chegando à comunidade. Você não consegue ter essa dimensão. Por isso digo que, tudo bem, pode até ser um gênero –mas é muito mais do que isso”.

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