“Ana Clara, não envesga – disse Irmã Clotilde
na hora de bater a foto.
– Enfia a blusa na calça, Lia, depressa.
E não faça careta, Lorena, você está fazendo careta. A pirâmide.”
Brasil, 1969. Emílio Garrastazu Médici toma posse como presidente do país, iniciando um dos período mais tenebrosos da ditadura militar. Acontece em setembro o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick por membros armados do grupo revolucionário MR-8. O sequestro dura três dias e é exatamente este o tempo-espaço que dura a história criada por Lygia Fagundes Telles, que faleceu no último domingo, dia 3 de março, em As meninas.
A obra, publicada originalmente em 1973, narra a amizade entre três meninas que moram no mesmo pensionato de freiras paulistano enquanto cursam a faculdade: Lorena Vaz Leme, estudante de direito, faz parte de uma família tradicional, rica, e sonha em se casar com um médico mais velho que já é casado e com filhos; Lia de Melo Schultz estuda ciências sociais e é uma jovem politizada e militante de esquerda, que sofre com a prisão do seu namorado, que também participa da luta armada; e, por último, Ana Clara Conceição, estudante de psicologia que vem de uma família desestruturada e foi vítima de inúmeros abusos durante a infância e a adolescência. É uma mulher muito bonita que acaba se entregando às drogas e vivendo uma paixão com um traficante ao mesmo tempo que sonha com um casamento promissor com um homem rico e mais velho.
Uma das principais inovações do texto de Lygia é a forma como foi montado. A história é contada a partir da visão, dos diálogos e principalmente do intenso fluxo de pensamento das três amigas. São por meio destes devaneios que o leitor descobre as questões da época, não só marcada pela política de repressão e ditadura militar, mas como cada uma das personagens lida também com os valores desenhados pelo conservadorismo e pela sociedade patriarcal no período.
Os fluxos de consciência das meninas se misturam em uma alternância intensa: inicialmente o leitor pode achar um pouco confuso e começar a procurar a qual personagem aquele pensamento se refere. Mas é preciso poucas páginas para que ele se acostume: a forma como a autora intercala a primeira e a terceira pessoa narrativa no texto e cria as identidades de cada uma das meninas tornam o texto polifônico e visceral. Essa verborragia proposital faz com que Lorena, Lia e Ana se confundam, mostrando o quanto cada uma delas é complexa e repleta de nuances. As voltas ao passado e a consequente narrativa do presente por meio dessa linguagem reflete também o que acontece fora do pensionato. O clima é confuso, irritadiço, repleto de dúvida e violência.
Aliás, a razão pela qual As meninas escapou da censura é, no mínimo, curiosa: segundo a própria autora, o censor responsável por avaliar o romance achou-o tão monótono que não passou da leitura de suas primeiras quarenta páginas. Ainda bem que este primeiro leitor não tinha ferramentas para ler as metáforas presentes e tenha desistido no início, afinal a obra não só narra sessões de tortura com detalhes como também aborda temas importantes e censurados na época, como drogas, sexo, aborto e homossexualidade.
O livro e toda a obra da autora foram relançados no Brasil pela Companhia das Letras a partir de 2009 com novo projeto gráfico. O texto também foi adaptado para o cinema em 1995 com direção de Emiliano Ribeiro, e os papéis de Lorena, Lia e Ana Clara foram de Adriana Esteves, Drica Moraes e Claudia Liz respectivamente. No filme, perdemos uma das maiores riquezas do texto: o embolar e desembolar dos fluxos de consciência das personagens, seja entre elas ou com a própria realidade. Ainda assim, é interessante assistir à adaptação desta história tão emblemática em termos de arte, política e lutas femininas, que continua ainda, em pleno 2022 – infelizmente –, muito atual. Está disponível no Looke.
Heloiza Daou é movida à palavra e um pouco obsessiva. É diretora de marketing na Intrínseca e também mãe do Tomás e da Cora, o job mais insano e amado da vida.