*Lane Gusmão – Dia a Dia On-line
“Não sei exatamente quando tudo começou, as lembranças que tenho com ele são sempre ruins. É como se eu fosse violentada desde sempre, e continuo todas às vezes que lembro de momentos com ele na infância”. O relato é de uma administradora que hoje faz tratamento psicológico para superar traumas da infância. Ela conta que foi violentada pelo tio, não se lembra por quanto tempo e nem quando tudo começou, mas disse que só terminou quando a mãe descobriu.
“Um dia minha mãe desconfiou e quando descobriu nos mudamos. Não temos muito contato com a família, mudamos de cidade e cortamos todos os laços. Não entendi muito na época, mas hoje imagino que ela quis evitar um escândalo na família e na cidade. Certamente um trauma pra nós duas”, disse a vítima que hoje está com 33 anos.
O estupro de vulnerável é caracterizado quando um adulto tem relações sexuais ou qualquer outro ato que leve a pornografia ou nudez com menores de 14 anos, com ou sem consentimento. Segundo dados da última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado ano passado, em 76% dos casos de estupro de vulnerável o agressor é um parente ou amigo próximo à família da vítima e o abuso acontece em ambiente familiar.
No Amazonas, só este ano, de janeiro a maio, foram registrados 261 ocorrências de estupro, desses, 232 na capital. Ainda de acordo com os dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado, nos primeiros cinco meses do ano, o maior número de casos registrados em Manaus, a vítima tinha menos de 11 anos (81 casos de meninas e 8 de meninos), seguido pela faixa etária de 60 a 64 anos de idade (60 casos, todas mulheres).
Com a quantidade de casos registrados em 2020, segundo a SSP, daria uma média de 52 casos por mês. O número é grande, mas pode ser ainda maior, nem todos são computados. Algumas vítimas por medo ou vergonha não denunciam.
Uma comerciante (que pediu pra não ter a identidade divulgada) conta que demorou a se dar conta de que era uma vítima de estupro. O agressor era o próprio marido e, por se sentir obrigada a cumprir com os “deveres matrimoniais”, acreditava que mesmo diante da violência, após ela se recusar ao ato sexual, o marido tinha razão.
“É difícil você se dar conta de que o marido comete estupro, fomos criadas acreditando que temos obrigações a cumprir, e homem gosta de sexo. Mas tinha dias que ele chegava bêbado ou me distratava durante todo o dia e à noite ainda queria que o esperasse na cama, quando não acontecia por livre e espontânea vontade, era forçado. Eu chorava, me sentia suja, agredida, mas o que podia fazer, era o meu marido”, disse ela.
A comerciante conta ainda que o casamento durou assim por muitos anos, e a relação só piorava. “Depois de alguns dias seguidos de relações forçadas, resolvi sair de casa. Foi horrível, ainda hoje é porque fui eu quem tive de sair de casa, abandonar a vida que lutei pra conquistar, mas era isso ou continuar com aquela farsa. Não o denunciei porque isso acabaria com meus filhos”, finalizou ela que até hoje não contou pra família sobre os abusos, mas buscou ajuda psicológica.
Traumas
Segundo o psicólogo Raphael Biase, os traumas causados pelo estupro podem afetar em vários aspectos. As vítimas geralmente apresentam maior insatisfação sexual, perda de prazer, além de medo e dor, tais sintomas que podem permanecer após anos da violência. A relação com a própria imagem também é afetada, assim como a autoestima e as relações afetivas são afetadas negativamente limitando a qualidade de vida.
“Quando o ato de estupro é realizado dentro da própria casa e pelo próprio marido da vítima. É costumeiro ser difícil de encarar como tal. Pelo fato de a vítima acreditar que está fazendo sua função de esposa. Dentre os principais traumas desse ato é o impacto negativo na autoestima e isso afeta diretamente o comportamento. A longo prazo as mulheres podem desenvolver distúrbios na esfera da sexualidade, apresentando ainda maior vulnerabilidade para sintomas psiquiátricos, principalmente depressão, pânico, somatização, tentativa de suicídio, abuso e dependência de substâncias psicoativas”, explicou o psicólogo.
Os danos podem ser minimizados com tratamento. Raphael Biase explicou ainda que é importante buscar ajuda, principalmente para entender que a vítima não tem culpa.
“A melhor maneira de trabalhar a confiança das vítimas é em Psicoterapia com grupos de apoio com vítimas em comum. É necessário trabalhar a retomada da autoestima e o maior enfretamento nesses casos é diminuir ou extinguir os sentimentos de culpa. A maioria das vítimas sente culpa pelo abuso sofrido”, disse.
Na infância, os danos se dão de várias formas, e nem sempre a vítima associa ao abuso pelo crime ter sido praticado há muito tempo. Por isso, a necessidade do acompanhamento psicológico.
“Existe um bloqueio por parte de algumas vítimas de suas memórias e suas emoções. Esse bloqueio emocional está ligado diretamente com o inconsciente. É como se fosse um mecanismo de defesa, ele oculta as memórias para evitar o sofrimento. Veja bem, o sofrimento é ocultado, mas não deixa de existir. Esse “esquecimento” é muito comum na primeira infância e vai de 0 a 9 anos de idade. A criança ainda não tem um amadurecimento físico e emocional para entender, significar e julgar o ato. O sistema neuronal acaba registrando só as imagens, não os afetos. Os pais devem procurar assistência psicológica para a vítima e para eles. Além de não culpá-la por ter sofrido o abuso”, disse o especialista.
Mesmo sem ter tido voz e ter visto o seu agressor ser punido pelo crime, a administradora, que na época era só uma criança, conta que hoje incentiva mulheres a denunciar os crimes.
“É importante denunciar, não pra contabilizar números, mas para servir de exemplo para outros criminosos disfarçados de “amigos” e “familiares” amorosos. Vê-los sendo punidos não apaga o que aconteceu, mas conforta saber que outras possíveis vítimas estão sendo poupadas”, finalizou.