R$ 100 reais num envelope, R$ 70 em outro. Em troca da grana recebida secretamente, Lucas prometeu votar em dois candidatos diferentes para a Câmara Municipal de Duque de Caxias, no Rio.
“Vou negar R$ 170 em época de pandemia?”, justifica o rapaz de 20 anos, cujo nome foi modificado nesta reportagem.
No dia 15 de novembro, primeiro turno das eleições municipais no Brasil, ele digitou um terceiro número na urna: não era o de nenhum dos candidatos que haviam comprado seu voto.
“Fiz pra tirar proveito da situação. Já que vivo num país largado às traças, posso me beneficiar e mesmo assim não significa que os candidatos vão ganhar. Recebi dinheiro e votei em alguém que acreditava mais.”
O caso de Lucas ilustra um fenômeno recorrente durante as eleições no país. Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, foram registradas 570 ocorrências de compra de votos no primeiro turno das eleições. O campeão dos Estados foi o Amazonas, com 58 ocorrências. Em seguida, o Maranhão, com 49, e Santa Catarina, com 40. No segundo turno, até esta segunda-feira (30/11), foram contabilizados 13 casos de compra de votos, com o Acre e São Paulo empatados em primeiro lugar (três casos cada um), de acordo com a reportagem da BBC Brasil.
A lista evidencia algo que, para o advogado Márlon Reis, um dos fundadores do movimento de combate à corrupção eleitoral no Brasil, não costuma ser associado à prática: ela acontece em todas as partes do Brasil, e não só nas mais pobres. Reis é ex-juiz, e foi idealizador da Lei da Ficha Limpa, que foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo ex-presidente Lula (PT) há uma década.
“Mapeando condutas, eu encontrei casos de cassações que aconteceram na Serra Gaúcha, um dos PIBs mais altos do Brasil, e também em cidades ricas do interior de São Paulo”, diz ele. A prática que normalmente é associada a “rincões do Norte e Nordeste” é, na verdade, “distribuída pelo Brasil”.
Ele diz que a prática “tem muito mais a ver com cultura, com o modo de entender política, do que com necessidades materiais urgentes”. “Os valores não são suficientes para mudar a qualidade a vida de ninguém.”
Variam entre R$ 5 a R$ 200, segundo as pesquisas de Reis, mas não é só com dinheiro que o voto é comprado.
Dinheiro e vantagens
“Qualquer tipo de vantagem é utilizada como moeda de troca: facilidades na rede pública, como furar a fila para consultas ou cirurgias, ou laqueaduras, no caso das mulheres”, explica ele.
Cestas básicas, tijolos, telhas, medicamento, comida e bebida também são ativos comuns usados para comprar a decisão de alguém na urna. Para os mais ricos, serve até a promessa de regularização fundiária do imóvel.
A compra de votos é crime eleitoral no Brasil, e leva à cassação e inelegibilidade dos políticos. Quem vende também pode ser responsabilizado, com pena de até quatro anos de reclusão e pagamento de multa.
Mas o meio político “sabe que não pode fazer isso de qualquer forma”, diz Reis, e, então, os políticos terceirizam o serviço da venda de votos.
“Os candidatos sempre buscam o máximo de afastamento possível daqueles que vão fazer o negócio por eles”, afirma.
“Essa negociação é bem sigilosa, obviamente. Mas os resultados dela não.”
Brasil afora, as notícias do primeiro turno das eleições mostram que houve operações contra a compra de votos que encontraram R$ 50 mil embaixo da cama de um candidato, distribuição de vales de combustível, dinheiro e lanches dados para eleitores, uma caixa de cachaça como moeda de troca, entre tantos outros.
No caso de Lucas, a primeira negociação foi assim: “Tem um vereador que tem uma certa proximidade com meu patrão e sempre passa lá no meu trabalho. Um dia, meu patrão perguntou para nós, funcionários: ‘O cara tá oferecendo R$ 100 pelo voto. Vocês vão querer?'”
“E quem não quer R$ 100?”
Os envelopes chegaram com os nomes de cada um dos funcionários.
A segunda negociação foi assim:
“Minha tia me ligou. Disse que tinha um candidato na sua rua, vizinho dela, fazendo campanha. E que ele estava oferecendo R$ 70 para votar nele. De novo, não neguei. Foi por meio dela.”
“Foi a terceira vez que eu votei e a primeira vez que vendi voto. Meus pais sempre falaram sobre isso, cresci sabendo. Não votei nesses candidatos porque conheço eles, um deles está enrolado em esquema. Acabei votando em um candidato a vereador com quem eu tinha estudado na escola. Os R$ 170 eu guardei para comprar um videogame.”
Para Mariana Borges, pesquisadora pós-doutora em política no Nuffield College da Universidade de Oxford, no Reino Unido, a venda de votos faz parte da cultura de fazer campanha no Brasil. Borges é autora de uma etnografia sobre clientelismo e política programática, incluindo a compra de votos, no Sertão da Bahia. Ela morou na região por cinco meses em 2014, durante a campanha eleitoral daquele ano.
O caso de Lucas ilustra bem uma ideia defendida pela pesquisadora. Para ela, a ideia de que políticos tentam converter cada centavo em voto é equivocada. Pelo contrário:
“eles sabem e não têm menor perspectiva de que vão converter voto. São conscientes que eleitores ganham favores de vários candidatos ao mesmo tempo”.
A compra de votos acontece, então, porque é a forma de os políticos mostrarem que têm força eleitoral, de acordo com Borges. Ela funciona ao lado das grandes carreatas, aglomerações, os jingles da campanha e a ocupação do som da cidade. “O candidato tem de parecer rico. No Brasil, muito associado a ciclos de poder aquisitivo, isso se traduz na disputa eleitoral”, afirma.
Estratégias de pressão
Uma foto do título eleitoral antes e o comprovante da votação depois. Foi isso que um dos candidatos para quem Lucas vendeu seu voto exigiu para fazer o pagamento. Pelo celular, ele enviou as imagens.
Com o voto sigiloso, candidatos e seus aliados que fazem a intermediação da venda de votos têm de recorrer a mecanismos que constranjam ou pressionem psicologicamente as pessoas de quem compraram votos, de modo a simular que, de alguma maneira, têm como saber em quem votaram. É um modo de garantir que os “contratantes” vão de fato votar neles.
Uma estratégia comum é esta que foi aplicada com Lucas: pedir uma foto do título de eleitor. Não funciona para nada, porque não é possível quebrar o sigilo do voto, mas, como observa Reis, “só o fato de estar ali anotando os dados já gera uma sensação de vigilância”.
Por outro lado, diz ele, é possível “monitorar o exercício do voto”. Se dez pessoas da mesma seção eleitoral receberam para votar em determinado candidato, deve constar ao menos dez votos daquela seção eleitoral para ele ou ela, segundo a lógica de quem fechou o negócio. Alguns intermediários dizem que vão verificar a informação, o que amedronta quem vendeu o voto. Isso quando não dizem diretamente que são pessoas poderosas que têm como receber uma lista de votos. “Isso frequentemente cola”, diz Reis. “Na dúvida, os eleitores preferem não arriscar.”
Embora seja proibido usar o celular ou qualquer outro aparelho eletrônico na cabine, há candidatos que pedem para que eleitores gravem o momento do voto para se certificar que o voto foi para eles.
E há estratégias mais inusitadas. Em 2006, um candidato a deputado estadual em Alagoas distribuiu um cartão com uma tarja magnética com sua foto e número para os eleitores de quem iria comprar votos, prometendo o pagamento de R$ 50. Aos eleitores, segundo o Ministério Público Eleitoral, disse que deveriam passar a tarja por cima da urna depois de votar, o que seria suficiente para captar todos os dados da urna e confirmar que o voto daquela pessoa havia ido para o candidato. É claro que não era verdade. O candidato, eleito, foi descoberto e cassado dois anos depois.
Mecanismos legais também são utilizados para a compra de votos. A contratação em massa de pessoas para participar da campanha, diz Reis, é uma delas.
“Todo mundo sabe que é uma maneira de angariar votos. A prática é de cadastrar essas pessoas com seu número de título de eleitor e de todos da família, de modo que fica implícito que se espera por aquela contratação temporária o voto de todos da família. Acaba se tornando um meio de compra de votos oficializado no mundo da política.”
Por outro lado, também pode haver um “toque de fraude” por parte do eleitor. “O fato de receber por aquilo, não quer dizer que vai votar. Nunca podemos comparar a compra de votos com uma relação de compra e venda. Os compradores de voto trabalham com uma margem de erro”, diz Reis.
Nas redes sociais, usuários adolescentes admitem ter vendido o voto sem ter sequer título de eleitor ainda. Políticos, por sua vez, reclamam, em uma série de áudios de WhatsApp atribuída a candidatos espalhados pelo Brasil, de ter investido dinheiro e promovido eventos sem receber em troca o número de votos prometidos.
Voto de cabresto moderno
Não é só no Brasil. Em algum momento, todas as democracias modernas tiveram compras de voto, de acordo com Reis.
Para o especialista, essa troca se dá porque não há consciência clara da importância do voto.
“O eleitor entende aquilo como seu, individual, algo que pode utilizar para obter vantagem pessoal”, diz. O pensamento é: “posso buscar uma vantagem imediata em vez de esperar por algo que não sei se virá” — no caso, os serviços públicos ou os ideais do mandato do candidato que escolher apoiar.
“Em uma sociedade em que haja desconfiança sobre como os demais se valerão do seu voto é que floresce uma comunidade disposta a vender o voto.”
No passado, o voto de cabresto no Brasil estava relacionado ao domínio direto, “uma força de superioridade direta dos antigos proprietários de fazendas com os seus subordinados”. Com o voto aberto, eleitores eram obrigados a votar em quem o grande fazendeiro quisesse, sujeitos à violência ou fiscalização de capangas.
Agora, a compra de votos se tornou muito mais complexa, opina Reis. Isso porque são lideranças como presidentes de associações, líderes religiosos, líderes de grupos de moradores ou profissionais que agora fazem as vezes dos donos de fazenda.
Essa dinâmica é o que permite a compra de votos por atacado, por exemplo.
“O político sequer precisa ter relação direta com o eleitor. Ele se vale de uma liderança local, como o prefeito, ex-prefeito, vereador ou presidente de associação, fazendo uma negociação no atacado, com a vantagem de que saber quantos votos virão para sua conta.”
Marcelo, de 19 anos, também vendeu o voto para dois candidatos em São Gonçalo, no Rio. Seu nome também foi modificado na reportagem. A intermediação em um dos casos foi feita por funcionários de um hospital público com ligação com um candidato. Pessoas que, por supostamente terem sido empregadas no local por causa dessa ligação, fizeram as vezes de líderes locais. Marcelo ganhou R$ 100 e R$ 50. A contrapartida foi comparecer a reuniões a favor de um dos candidatos, em um restaurante de propriedade sua, e mandar por WhatsApp uma foto de seu título de eleitor.
A compra de votos é menos uma relação comercial e mais o fortalecimento de um vínculo entre líderes e pessoas que dependem deles ou que lhes procuram para solucionar problemas, segundo Reis. “É uma rede de solução de problemas, que tem como base a sobrevivência do clientelismo”, diz ele.
Ou seja, os votos são comprados por essas lideranças para onde a comunidade vai para buscar soluções — para problemas de saúde, segurança, entre outros.
Na opinião do ex-juiz, “na hora da eleição, é preciso dar sinal de que esse vínculo está forte”.
“É como se fosse transmitida a notícia do patrono para o cliente de que ele estará lá. É um fortalecimento desse vínculo de maneira simbólica, não é realmente uma relação comercial, de compra e venda.”
A venda do voto, então, é uma maneira de reafirmar um vínculo pré-existente. E o eleitor, ou a parte fraca desse elo, se mantém dentro de uma bolha, da qual é muito difícil sair.
“Trata-se de repetição, reiteração de condutas”, diz.
Na visão de Borges, da Universidade de Oxford, os eleitores que participam ativamente da compra de votos veem os candidatos que a praticam como desonestos, corruptos.
“A impressão que têm é que quem faz isso abandona os eleitores depois das eleições, foge da comunidade que o elegeu. Não é um reforço de laços porque não existem mais”, afirma.
Para o promotor eleitoral Sandro Bíscaro, que trabalha no Maranhão, a venda de votos “é uma via de mão dupla”. Por um lado, políticos que já fazem caixa durante o mandato para chegar nas eleições e “torrar” o dinheiro na compra de votos. É um “processo de domínio, com o político deixando sempre faltar os serviços sociais essenciais para manter aquela sociedade escrava dele”, afirma. Por outro, eleitores que não estabeleceram um “link” entre votar e os serviços sociais depois que são prestados.
“A sociedade muitas vezes assiste aos telejornais e assiste atônita como se não tivesse relação com aquilo, quando na verdade tem tudo a ver com aquilo.”
A solução para a compra de votos no Brasil, na opinião de Bíscaro, passa necessariamente pela educação e conscientização da população, aliada a ações de fiscalização do Estado.
Borges tem uma visão diferente. Para ela, a compra de votos no Brasil deveria ser descriminalizada.
“A gente só está criminalizando uma prática muito comum sem entender como funciona. Claro que não é boa, mas não quer dizer que o eleitor perde seu direito de votar. O segredo do voto garante isso”, afirma. A medida, diz ela, “acaba criminalizando os políticos que não são amigos dos juízes, que não têm as melhores entradas” para se livrar das acusações. E isso faz com que a compra de votos seja menos discutida e acabe virando, na visão dela, “o segredo de que todo mundo sabe”.
“O feito mais perverso seria se houvesse controle do voto”, diz ela. Não havendo isso, na opinião da pesquisadora, a melhor forma de combater o fenômeno é tentar mudar o hábito da compra de votos que faz parte da cultura popular da política brasileira, diz. Para Borges, é preciso investir na educação política, “de forma que todas as pessoas possam participar da política e que a política possa fazer parte da vida das pessoas”.