A implantação da hidrelétrica de Balbina e as mudanças climáticas alteraram o regime de inundação de florestas alagáveis pobres em nutrientes causando mortalidade de árvores centenárias da Amazônia, como a macacarecuia ou cueira (Eschweilera tenuifolia), árvore símbolo dos igapós de águas pretas e altamente adaptada ao pulso de inundação (subida e descida anual das águas dos grandes rios da Amazônia Central). É o que aponta o artigo publicado por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa/MCTIC) na revista científica New Phytologist.
O trabalho tem como primeira autora a egressa do Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas – Botânica do Inpa, Angélica Resende, como um dos frutos da sua tese, além dos pesquisadores Jochen Schöngart (orientador principal de Resende), Maria Teresa Piedade, e a pós-doutoranda Flavia Durgante. Piedade e Schöngart são coordenador e vice, respectivamente, do projeto Ecológico de Longa Duração executado pelo Grupo de Pesquisa Ecologia, Monitoramento e Uso Sustentável de Áreas Úmidas (Peld-Maua/Inpa), grupo que há décadas estuda as áreas alagáveis da Amazônia.
No artigo “Perturbações do pulso de inundação como ameaça a árvores centenárias da Amazônia” (Flood-pulse disturbances as a threat for long-living Amazonian trees), buscou-se elucidar a relação de distúrbios climáticos e antrópicos com o crescimento e a mortalidade da macacarecuia, pertencente à mesma família da castanha-do-pará (Lecythidaceae), que durante períodos evolutivos desenvolveu adaptações sofisticadas para sobreviver às inundações prolongadas. A espécie pode passar até dez meses do ano total ou parcialmente submersa, porém precisa de um a dois meses em terreno seco para executar suas atividades fisiológicas. Á árvore forma madeira densa, possui crescimento lento e alta longevidade (no estudo foi encontrada uma árvore de mais de 800 anos).
Para isso, Resende comparou o crescimento e a mortalidade da espécie em um ambiente não perturbado (Parque Nacional do Jaú) e em outro ambiente perturbado pela alteração do pulso de inundação, causado pela implementação da hidrelétrica de Balbina (a jusante da barragem), no Rio Uatumã, na década de 1980, no município de Presidente Figueiredo. “A usina foi um dos piores desastres socioambientais brasileiros. A construção inundou uma área de floresta nativa de 2,4 mil km2 e quando entrou em operação não atendeu nem metade da demanda de energia elétrica da capital amazonense, que continuou dependente de usinas térmicas”, destaca Schöngart.
Conforme o estudo, o patrimônio genético de uma das espécies arbóreas mais adaptadas à inundação está ameaçado. “Isso representa o risco de perda de indivíduos que durante séculos passaram por diferentes eventos de cheias e secas, bem antes da chegada dos europeus à região amazônica, mas que agora morrem em consequências da atuação do ser humano moderno que vem alterando direta (usina hidrelétrica) ou indiretamente (mudanças climáticas) o regime de inundação da maior bacia hidrográfica do mundo”, destacam os autores no artigo.
As árvores que cresciam na área não perturbada apresentaram diferenças no crescimento após 1975, quando se sucederam períodos de intensas cheias nos rios da Amazônia Central, e grandes mudanças climáticas no panorama global se intensificaram, o que afetou até mesmo as áreas remotas de igapó da Amazônia. “Ainda na área não perturbada, algumas árvores morreram em períodos distintos, muitas vezes associados a eventos de La Niña e nas fases frias da Oscilação Interdecadal do Pacífico, que é o resfriamento das águas superficiais do Oceano Equatorial do Pacífico a curto (ano) e em longo (décadas) prazos, respectivamente, resultando no aumento das chuvas e cheias na Amazônia Central, como observada nas décadas recentes”, explicou Schöngart.
Quanto às árvores crescendo na área perturbada pela alteração no pulso de inundação, causada pela hidrelétrica de Balbina, houve alterações distintas no padrão de crescimento após a implementação da hidrelétrica, período no qual ocorreu mortalidade em massa de macacarecuia, e também de outras espécies como o arapari. Estudo anterior feito pelos autores deste artigo mostrou por meio de análises de imagens de satélite alta mortalidade de árvores em igapós que ficam até 125 km abaixo da barragem de Balbina (publicado em 2019 em Science of the Total Environment), chegando a ter áreas baixas de florestas alagadas dominadas por milhares de árvores mortas, conhecidas como paliteiros. Neste estudo os autores já evidenciavam que as árvores desta espécie morreram em consequência da construção e operação da barragem de Balbina.
Para chegar a esses resultados, foram usados dados de campo, coleta de amostras de árvores vivas e mortas para analisar os anéis de crescimento no Laboratório de Dendroecologia do Inpa e no laboratório de isótopos de carbono do Instituto Max Planck de Biogeoquímica com o qual o grupo MAUA tem um longo histórico de cooperação técnico-científica. A partir dessas análises, foram feitas análises estatísticas cruzando as informações com eventos históricos de alterações climáticas e antrópicas nas duas unidades de conservação.
Conforme Resende, parte das árvores morreram no período da construção da barragem, quando houve uma grande redução na disponibilidade de água nos igapós a jusante da barragem, como consequência do represamento do Rio Uatumã, para a criação do Reservatório de Balbina. Outro momento que causou a morte de árvores foi durante a operação da barragem que criou condições permanentes de inundação, ultrapassando a capacidade adaptativa da espécie, e resultando em mortalidade massiva, ou seja, extremos de falta ou excesso de água, causam a mortalidade desta espécie superadaptada à inundação regular.
“A previsão é que a frequência e magnitude desses dois extremos de falta e excesso de água deverão aumentar, devido às mudanças climáticas em curso e dos planos de implementação de dúzias de grandes usinas hidrelétricas nos rios amazônicos”, diz Resende, que é engenheira florestal e atualmente faz pós-doutorado na Embrapa Amazônia Oriental, no Pará.
Recomendações
Em conjunto com outros resultados obtidos no âmbito do projeto Peld-Maua do Inpa, os resultados evidenciam os impactos em florestas alagáveis de igapó na Amazônia Central, causados por alterações do pulso de inundação em consequência de mudanças do clima e do uso de terra (usinas hidrelétricas).
Os autores recomendam em termos de políticas públicas que os tomadores de decisão considerem os potenciais impactos nas áreas alagáveis a jusante das usinas hidrelétricas planejadas, quando da realização do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima). Também sugerem que haja ajuste na geração de energia das usinas existentes e em construção, de forma a considerar a manutenção de um pulso de inundação nas áreas alagáveis a jusante da barragem assegurando a sobrevivência dos organismos e dos importantes processos ecológicos desses ambientes críticos.
Para a mitigação das mudanças climáticas globais na Amazônia, os autores entendem que isso exige ações concretas em nível internacional, reduzindo as emissões de gases de efeito de estufa em nível global e regional e, simultaneamente, reflorestando áreas degradadas em grande escala.
Financiamento
O estudo foi financiado pelo CNPq–Fapeam, no âmbito de projetos do Programa Grande Escala da Biosfera-Atmosfera da Amazônia (LBA), PELD e INCT-Adapta.
*Informações da ascom/Inpa.