Sob o implacável sol amazônico, os pesquisadores a bordo do barco Comandante Gomes 3 apertam os olhos para não perder os poucos segundos em que os botos (boto-rosa) e os tucuxis (boto-cinza) surgem das águas barrentas para respirar.
O trabalho extenuante da expedição Boto da Amazônia, realizado por três semanas ao longo de 1.200 km pelos rios Solimões, Purus e Japurá, visa a responder a uma pergunta dramática: após anos de caça em larga escala, os golfinhos da Amazônia continuam ameaçados de extinção?
A situação mais preocupante é a do boto. A partir do início dos anos 2000, um monitoramento do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) liderado pela bióloga Vera da Silva começou a notar um declínio acentuado da população da espécie na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá (530 km de Manaus).
Em seguida, o Inpa concluiu que a população do boto em Mamirauá vinha caindo pela metade a cada dez anos. A descoberta o colocou na lista vermelha de animais em perigo de extinção da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN, na sigla em inglês), em 2018.
Dois anos depois, o tucuxi, que costuma morrer após ficar preso em redes de pesca, recebeu a mesma classificação. Hoje todas as espécies de golfinho de rio no mundo estão ameaçadas, e uma delas, o baiji, foi extinta, na China.
Com o boto, o motivo da redução abrupta foi a popularização do seu uso como isca para a pesca da piracatinga, também conhecida como urubu d’água. Para ser capturada, essa espécie de peixe carniceiro é atraída para dentro de um cercado pela gordura do boto esquartejado, um frenesi parecido ao ataque de piranhas. Jacarés também costumam ser usados na atividade, mas com impacto ecológico menor.
“A pesca da piracatinga é a ameaça mais gritante, a que temos de lidar com maior rapidez”, afirma a pesquisadora-chefe da expedição, a fluminense Sannie Brum, 38.
“Os declínios têm sido observados em áreas muito pontuais, mas, como são ameaças emergentes, sem solução e em escalada, foram classificados como ameaça de extinção pela IUCN”, afirma a bióloga.
A pesca de golfinhos amazônicos já é proibida, mas só essa proteção legal não era suficiente. Por isso, em 2015, o governo federal decretou, por cinco anos, uma moratória da pesca e da comercialização da piracatinga.
A suspensão dessa atividade foi renovada duas vezes por períodos de um ano e agora termina em 1º de julho de 2022. A decisão cabe ao governo federal, via Ministério da Agricultura.
O consumo da piracatinga é raro entre os ribeirinhos, mas sua carne é bastante apreciada na Colômbia, o que abriu o mercado para esse peixe há cerca de 20 anos. Desde 2017, porém, o país vizinho suspendeu a comercialização por tempo indeterminado, após pesquisas detectarem alta concentração de mercúrio na carne.
No Brasil, é comum a piracatinga ser comercializada “disfarçada” de filé de douradinha ou de pirarucu, enganando o consumidor.
Segundo relatório do Ministério da Agricultura, a partir de números fornecidos pelo governo estadual, o Amazonas produziu cerca de 4.500 toneladas/ano entre 2011 e 2014. A pesca ocorre principalmente no rio Solimões.
O monitoramento só foi retomado em outubro, graças a uma parceria entre o Inpa e a ONG Sea Shepherd Brasil, que decidiu patrocinar, inicialmente, seis viagens semestrais de monitoramento, com o mesmo itinerário de 2016. A primeira expedição, acompanhada pela reportagem da Folha de São Paulo, foi concluída no último sábado (23).
Método para baleia
Para o cômputo dos botos e tucuxis, os pesquisadores do Inpa utilizam método criado para as baleias, adaptado para as condições amazônicas e para os golfinhos de rio. Trata-se de estimativa: como os cetáceos se movimentam e só são avistados quando sobem para respirar, não é possível contá-los todos.
Para medir a densidade populacional, os biólogos dividem então a distância percorrida em transectos, unidade usada para contar tanto plantas quanto animais. No caso dos golfinhos amazônicos, um novo transecto é criado a cada 2 km percorridos.
*A reportagem é da Folha de São Paulo.