O sucesso da empreitada não apenas recuperou a saúde de seus cabelos, mas foi o início do que se tornaria um império da indústria de cosméticos. Breedlove, que passou a se chamar Madam C. J. Walker, é considerada a primeira mulher negra milionária dos Estados Unidos — e a primeira mulher a virar milionária por conta própria.
A história improvável da filha de escravos libertos que se tornou uma das mulheres mais influentes de sua época foi contada na biografia On Her Own Ground, escrita por sua trineta, A’Lelia Bundles. O livro inspirou a série A Vida e a História de Madam C. J. Walker, que estreou nesta sexta-feira (20/3) na Netflix, com Octavia Spencer no papel de Walker.
Walker não apenas revolucionou o setor de beleza para mulheres negras, mas também se destacou pela filantropia e pelo ativismo, em uma época em que grande parte dos Estados Unidos vivia sob rígidas leis de segregação racial.
Segundo Joanne Hyppolite, uma das curadoras do Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana, em Washington, além de oferecer treinamento a centenas de mulheres negras que trabalhavam como cabeleireiras e vendedoras de seus produtos, Walker e outras empresárias negras pioneiras da época criaram oportunidades de educação e independência econômica para milhares de outras mulheres, que se tornaram gerentes ou proprietárias de seus próprios salões de beleza.
“O alcance de seus produtos e programas de treinamento também foi internacional e teve impacto em mulheres negras ao redor do mundo”, diz Hyppolite à BBC News Brasil.
“Com maior oportunidade econômica, essas mulheres, por sua vez, puderam oferecer melhor educação para seus filhos e cobrir outras necessidades, como saúde para suas famílias e membros de suas comunidades. Isso teve uma correlação direta com o crescimento da classe média negra.”
Pobreza, casamentos e sonho
Quando Walker nasceu, em 1867, seus pais eram escravos emancipados que trabalhavam em uma plantação no Estado da Louisiana. A Guerra Civil, que culminou com a abolição da escravidão nos Estados Unidos, havia terminado apenas dois anos antes.
Ainda criança, ela também já trabalhava na mesma plantação de algodão. Aos sete anos de idade, órfã de pai e mãe, foi morar com a irmã e o cunhado. Casou-se aos 14, teve uma filha, A’Lelia, aos 17, e ficou viúva aos 20.
Ela então se mudou com a filha pequena para St. Louis, no Estado de Missouri, onde trabalhava como lavadeira e cozinheira, ganhando US$ 1,50 (R$ 7,60) por dia. O segundo casamento acabou em divórcio. Nessa época, seu cabelo começou a cair.
Segundo Bundles, sua trineta, muitos americanos não tinham acesso a água corrente ou eletricidade na virada do século passado e, por isso, lavavam o cabelo com menos frequência, o que danificava o couro cabeludo e muitas vezes levava à queda dos cabelos.
Em 1904, Walker descobriu um produto para fazer os cabelos crescerem inventado por outra pioneira da indústria cosmética para mulheres negras, Annie Turnbo Malone. Ela logo passou a trabalhar como vendedora dos produtos de Turnbo e mudou-se para Denver, onde se casou com o terceiro marido, Charles Joseph Walker.
Em uma época em que a população branca costumava se referir a mulheres negras como “tia”, Walker passou a se identificar como Madam C.J. Walker, usando a palavra “madame” e as iniciais e sobrenome do marido, para denotar respeito.
Walker diria depois que, nessa época, sonhou com uma fórmula para tratar os cabelos. Ela investiu US$ 1,25 (R$ 6,30) e começou o seu próprio negócio, vendendo seu produto de porta em porta, em igrejas e clubes, para mulheres negras, um mercado que na época costumava ser ignorado pela indústria de beleza.
Império
O chamado “Sistema Walker”, que incluía um tratamento com diversos produtos para o cabelo crescer e ficar macio, logo se tornou um sucesso em todo o país, impulsionado por anúncios em jornais destinados ao público negro, encomendas por correio e franquias.
Novos produtos foram sendo lançados, e os anúncios — e também as embalagens — mostravam a própria Walker, com cabelos volumosos e saudáveis.
Segundo o historiador americano Henry Louis Gates Jr., que escreveu sobre Walker em suas colunas, ela tinha grande talento para o marketing e vendia mais do que simplesmente um produto. “Ela oferecia [a seus clientes] um estilo de vida, um conceito de total higiene e beleza que, em sua mente, iria impulsioná-los com orgulho para progredir.”
Em poucos anos, Walker havia construído uma fábrica na cidade de Indianápolis, um salão de beleza e uma escola para treinar outras mulheres interessadas em trabalhar com seus produtos, que também passaram a ser vendidos em países da América Central e do Caribe.
Muitas das clientes que compravam seus produtos acabavam se tornando vendedoras. Walker buscava promover talentos femininos e incentivava as representantes a não apenas vender os produtos, mas também ajudar suas comunidades.
Ao longo de sua vida, Walker treinou cerca de 40 mil mulheres negras, oferecendo a elas a possibilidade de superar a pobreza e ter uma carreira independente. Muitas se tornaram ativistas no movimento por direitos civis.
Historiadores ressaltam que essa era uma época em que, para a população negra nos Estados Unidos, havia poucas oportunidades além do trabalho no campo ou empregos de baixos salários, e uma das únicas maneiras de escapar da pobreza era criar seu próprio negócio.
“Durante a era da segregação, a maioria das mulheres negras tinha pouco acesso à mobilidade econômica, devido a oportunidades limitadas de educação e trabalho”, diz Hyppolite.
Ativismo e filantropia
Walker queria garantir que sua filha única tivesse a educação formal que ela própria não teve. A’Lelia frequentou a faculdade, gerenciava as operações da empresa e abriu um salão de beleza no Harlem, em Nova York, onde era figura importante da cena cultural.
Em 1913, quando poucas mulheres dirigiam, Walker tinha três automóveis. Em 1916, contratou o arquiteto negro Vertner Tandy para construir a Villa Lewaro, uma mansão de 34 cômodos no afluente bairro de Irvington, no condado de Westchester, em Nova York, onde tinha como vizinhos magnatas como John D. Rockefeller.
Walker era atuante em questões sociais e na luta por direitos civis. Ela organizou a Associação Nacional dos Fabricantes de Cosméticos Negros em 1917 e participava ativamente da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), uma das principais organizações de direitos civis dos Estados Unidos.
Em 1917, ela chegou a ir à Casa Branca, acompanhada de outros líderes negros do Harlem, para defender a igualdade de direitos para a população negra e reivindicar que linchamentos — que eram comuns nos Estados Unidos, com 4.743 casos registrados entre 1882 e 1968, a maioria deles tendo como vítimas pessoas negras — fossem classificados como crimes federais.
O presidente Woodrow Wilson desmarcou a audiência na última hora e mandou um assessor em seu lugar. Levaria mais de cem anos até a aprovação de uma lei tornando linchamentos crimes federais, o que só ocorreu no final do mês passado.
Walker também ficou conhecida por doações generosas a organizações que promoviam direitos civis e a escolas e universidades destinadas a alunos negros. Quando ela morreu, em 1919, aos 51 anos de idade, vítima de falência renal, era considerada a empresária negra mais rica do país.
Walker tinha orgulho de sua trajetória da pobreza à fortuna, em uma época em que tanto negros quanto mulheres enfrentavam obstáculos na sociedade americana.
“Eu sou uma mulher que veio dos campos de algodão do Sul. De lá, fui promovida ao tanque. Depois, fui promovida à cozinha. E de lá promovi a mim mesma ao negócio de produção de produtos para cabelo”, disse Walker durante uma convenção nacional de líderes negros em 1912. “Não tenho vergonha de minhas origens humildes. Nunca pense que só porque você tem que trabalhar no tanque você não é uma dama!”