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Circularidades culturais e antropológicas na Música Brasileira – Parte 1

88563438 © creativecommonsstockphotos | Dreamstime.com

 

“Circularidade Atlântica” é um termo cunhado por Paul Gilroy[1] para designar interlocuções antropológicas e culturais, operadas no seio do espaço já designado como Um Rio Chamado Atlântico.[2]  Será esse o locus onde matrizes culturais diversas, em diálogo constante e dinâmico, virão  a propiciar  nas Américas  o surgimento de novas estéticas, tradutoras do processo antropológico que se gestaria no Novo Continente a partir do 500.

A música sacra, trazida da Europa pelos colonizadores, esteve presente no Brasil desde o início da “cristianização dos gentios”. Posteriormente, com a expulsão das ordens religiosas operada  por Pombal em 1759, as irmandades – associações de homens leigos -,  passaram a assumir  atividades antes consagradas aos clérigos. Ainda anterior ao édito pombalino, a Irmandade de Santa Cecília –  a padroeira dos músicos -, já havia sido fundada em 1749, em Vila Rica, Minas Gerais.

Um incipiente movimento musical começa a se gestar no Brasil, tendo como modelo  obras importadas da metrópole lusitana. Portanto, cânones cujas origens podiam nos remeter, em última instância,  até  aos primórdios da escola europeia de composição – iniciada na Notre Dame de Paris na Alta Idade Média -, já eram incorporados à prática musical no Brasil entre 1750 e 1810, período conhecido como como Barroco Mineiro. A par dessa corrente, à medida que a colonização do território se expandia, música advinda de diversas culturas africanas, assim como os festejos populares, acompanhados da chamada  música profana [3] , de origem popular europeia – predominantemente portuguesa -, se fundiam, sincretizando-se no espaço antropológico de um Brasil, que apenas começava a esboçar seus traços.

Será essa música de cunho popular, transmitida mnemonicamente, que transitará de forma anônima pelo país. Se por um lado, a música litúrgica, herdada da escola composicional europeia, possuía uma matriz definida, o mesmo não se podia dizer das expressões musicais  que acompanhavam os festejos do chamado catolicismo popular [4] , o qual, surgido em Portugal aportava à sua colônia americana. Na bagagem de  levas de populações, ao longo de séculos, viajavam patrimônios imateriais que, aqui chegando, logo se amalgamavam com manifestações  oriundas de outras matrizes, iniciando o desenho de um senso de identidade em estágio inicial. Faz-se necessário, desde logo, definir o sentido em que utilizo o termo identidade. Múltiplas seriam as possibilidades de definição. Para dirimir quaisquer dúvidas a respeito, no presente texto considero identidade não como algo imanente, mas como um processo de construção cultural, no qual uma teia  de signos, apropriados e, amiúde, re-semantizados  antropologicamente, geram um sentido de pertencimento e identificação para com um determinado grupo social. Portanto, a definição aqui utilizada pretende ser sociológica.[5]

A par da imigração europeia, o maior contingente foi constituído por  africanos. Importados como mão de obra escrava, a cultura que os acompanhou na diáspora influenciou profundamente os múltiplos aspectos presentes no processo antropológico  gestado no Brasil.

Kazadi wa Mukuna, identifica em sua obra [6] elementos musicais provenientes do Reino do Congo, de onde grande parte da população escravizada importada para  as Américas era oriunda. Seria essa uma das matrizes a contribuírem profundamente para  o processo de formação do Brasil.[7]

 

[1] GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência.

São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

[2] SILVA, Alberto da Costa e. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Ed. da UFRJ, 2003.

[3] Cabe aqui esclarecer o sentido em que se usa o termo música profana. Profano, do latim pro, defronte e fanum, templo. Portanto, música tocada fora do templo. Dentro da igreja apenas se permitia música vocal sacra. Instrumentos podiam ser utilizados apenas fora do templo,  nos adros em frente às igrejas, onde amiúde se realizavam as festas populares nos centros urbanos do medievo europeu.

[4] Conforme pesquisa amparada pelos relatos de Teófilo Braga e Leite de Vasconcelos, (apud RAMOS, s.d.) o catolicismo popular português continha elementos transferidos das religiões avéstica e védica, bem como do paganismo greco-romano. Seria esse o tipo de religiosidade que cruzaria o Atlântico a partir da Europa, trazido com a colonização, e “logo amalgamado às religiões naturais do ameríndio” (RAMOS, sd: 31.). VASCONCELOS, Leite de, Religiões da Lusitânia. 3 vols.3ª edição.s.d.

[5] Ou seja, enfatizando o ambiente  social e cultural, bem como  os mecanismos individuais e coletivos de socialização e apropriação antropológoca a eles inerentes. Ver a propósito Identity  texto de BYRON, Reginald em Encyclopedia of Social and Cultural Anthropolgy. BARNARD, Alan e SPENCER, Jonhatan (orgs) London: Routledge.1996.

[6] MUKUNA, Kazadi Wa. Contribuição Bantu na música popular brasileira:perspectivas etnomusicológicas.  São Paulo:Terceira Margem. 2000.

[7] Sobre os múltiplos portos de embarque, ver a propósito, GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal à morte de Zumbi dos Palmares, volume 1. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019 . ( Uma história da Escravidão no Brasil) recurso digital.

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