“Nos tempos de Marie Curie, pretender brilhar por conta própria era algo anormal, presunçoso e até mesmo ridículo.”
Eu me lembro da primeira vez em que ouvi falar sobre Madame Curie. Eu devia ter uns 10 anos e foi para uma pesquisa da escola. Tínhamos que buscar cientistas célebres e eu fui atrás de uma mulher, afinal, todo mundo escolhia os homens de sempre. Madame Curie era a única que existia na enciclopédia Mirador (Sim, sou da época da enciclopédia, do papel almaço e do trabalho apresentado na cartolina), e eu me recordo bem de ficar encantada com suas descobertas, com o fato dela ter sido a primeira mulher a vencer o Nobel e ser a única pessoa que o ganhou duas vezes em áreas diferentes relacionadas à pesquisa.
Daí para frente, toda vez que batia o olho em algo com o nome da Curie eu parava para olhar. Ao poucos, fui entendendo mais sobre o trabalho dela, a relação com o marido Pierre e também tudo que ela descobriu e realizava enquanto cuidava de duas filhas pequenas. Mas foi só com o livro de Rosa Montero, A ridícula ideia de nunca mais te ver, que tive uma dimensão mais clara do que foi ser Marie: suas ambições, suas vontades, sua força e claro, toda sua luta contra o preconceito por ela ser uma mulher. Uma mulher cientista.
A obra constrói uma narrativa importante sobre o luto, e mistura trechos do diário de Madame Curie, escritos após a morte trágica do próprio marido e a vivência da autora, Rosa Montero, após enfrentar a morte de Pablo, seu companheiro durante 21 anos. São páginas que falam sobre como enfrentar a dor, a vida doméstica em diferentes tempos e de como a morte é ao mesmo tempo uma experiência coletiva e única para cada um de nós. É um romance autobiográfico duplo, que reúne a fantástica e difícil vida de Madame Curie com a prosa lapidada e fluente de Rosa.
No dia 15 de abril estreou na Netflix Radioactive, filme estrelado pela Rosamund Pike que busca mostrar um pouco da vida e obra de Madame Curie. Confesso que como grande fã da cientista, esperava um pouco mais do que foi entregue. É um filme bem didático de quase duas horas, com uma reconstrução eficiente de Paris, e que serve para apresentar um pouco da vida da cientista, ainda que de forma romanceada. Parece que não há muito tempo para o telespectador comemorar as grandes vitórias de Marie, e, acredito que pelo ritmo acelerado da trama, tudo soa muito mais fácil do que o seu próprio diário relata.
Marie era uma mulher à frente do seu tempo. Brilhante e ambiciosa, era chamada de arrogante e difícil, como acontece até hoje com qualquer mulher que seja decidida e segura. Ela trabalhou incansavelmente durante muitos anos no laboratório que dividia com Pierre. Inclusive, durante suas duas gravidezes. O marido era um companheiro que incentivava a cientista e que dividia tudo com ela, menos o trabalho doméstico, vejam só. Marie corria para amamentar as filhas nos intervalos do trabalho e, ao mesmo tempo, precisava lidar com a culpa feminina de não sentir que está fazendo qualquer coisa 100% bem: nem sendo uma boa mãe nem sendo uma boa profissional. Após o nascimento das meninas, Pierre publicou muito mais artigos científicos que Marie. Enquanto isso ela criava crianças, trabalhava no tempo que sobrava e se via obrigada a ficar em casa recolhendo brinquedos e fazendo geleias.
Após a morte de Pierre, Marie se envolveu com o professor Langevin, que era casado à época. Ela, que revolucionou a história da ciência ainda viva, teve seu trabalho colocado em cheque por conta do machismo da sociedade. Sua vida privada foi exposta de forma que a opinião pública tivesse instrumentos para julgá-la. Como se a qualidade do trabalho de uma mulher tivesse alguma coisa a ver com quem ela dorme ou deixa de dormir. Só que Marie não se importava com o que os outros pensavam. Quando os responsáveis pelo prêmio Nobel ameaçaram retirar sua condecoração, ela afirmou:
“Na realidade, o prêmio foi concedido pela descoberta do rádio e do polônio. Creio não haver qualquer relação entre meu trabalho científico e os fatos da minha vida privada. Não posso aceitar, por princípios, a ideia de que a apreciação do valor do trabalho científico seja influenciada pela calúnia e pela difamação sobre minha vida privada.”
Antes disso, como várias mulheres cientistas, Marie também tinha enfrentado o preconceito na faculdade, o julgamento do que os pares chamavam de falta de beleza e emoção, além da exclusão de seu nome de pesquisas e estudos em que ela foi o pilar mais importante. Rosa Montero diz: “Esse tipo de coisa aconteceu com tanta frequência na história da ciência que o gesto de minimizar o talento, a inteligência e a contribuição das mulheres cientistas deveria ser considerado um erro sistêmico.”
Quanto mais eu leio e encontro histórias e materiais sobre Curie, mais eu me identifico e entendo por que, desde pequena, essa personagem tão emblemática da história da ciência mexe tanto comigo. A sensação é que Marie, nascida na Polônia em 1867, sempre soube o que queria da vida. Não baixou a cabeça nem se encaixou nos padrões impostos pelos homens, pela faculdade, pela sociedade francesa. Diferentemente de muitas mulheres, como eu, que demoram anos, leituras e estudos para entender, ela sempre soube que era incrível e que não precisava de modéstia, palavra que dra. Maya Angelou, anos depois, vai definir como uma afetação adquirida.
Glennon Doyle, em Indomável, outro bom livro que em breve vai aparecer por aqui, arremata: “Se fingir de burra, fraca e boba é um desserviço para qualquer mulher e para o mundo. Toda vez que uma mulher finge ser menos do que é, rouba a permissão de outras mulheres para existirem completamente. Não confunda modéstia com humildade. Modéstia é uma mentira risonha. Uma atuação. Uma máscara. Um fingimento. Não temos tempo para isso.”
Marie já sabia de tudo isso e há muito tempo. E olha o que ela fez. Ainda bem.
Heloiza Daou
Diretora de marketing na Editora Intrínseca, trabalha há mais de catorze anos no mercado editorial. É responsável pela criação e implementação das campanhas de marketing e divulgação da empresa.
Formou-se em comunicação social na UFF e artes cênicas na UNIRIO, e tem duas especializações: uma focada em consumidores e inovação, em Stanford, na Califórnia, e outra no mercado do livro, em Yale, Connecticut.